A tentativa de viver a totalidade da experiência Ou A angústia do Rato-dúvida

Francisco Arozena
27/5/2023

Um cabelo meu, um único cabelo meu cai sobre a mesa, e ele tem o formato de um sinal de pergunta.

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Este texto não é direcionado a todos.

Ele é, antes que um texto direcionado a um leitor específico, a tentativa de um diálogo com aquele pobre diabo que sofre por não poder olhar para uma árvore, por não poder escrever sobre a luz que inunda a cidade, por não poder sentir a textura de uma pele e por compreender que todas estas coisas lhe são tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes.

E por mais que as ferramentas necessárias para ver, para ouvir e para sentir este ser as possua, portanto, lhe seria naturalmente possível experienciar tais coisas, o que o aflige é um outro sintoma.

O afeta uma certa dissociação do mundo que o rodeia, o sentimento de ter seu olhar voltado para dentro e a sensação de que em todas as coisas que estão fora dele ele tem derramado a si próprio, se projetado sem descanso; assim, ele é os carros que correm na avenida e é um cigarro que arde sozinho na calçada ou o crepúsculo que não chega a definir-se, ele é tudo e é todos, mas não chega jamais a experienciá-los.

E por quê faz isto? É voluntário?

Neste particular caso, ele parte da suposição involuntária de que deve procurar no maior número de objetos aquilo que o revele a si mesmo e que o ajude a encontrar o que ele realmente é. Portanto, usa ao mundo como plataforma para si próprio; como instrumento para sua auto-pesquisa que sempre tende à desmedida. Então, quando sai de sua nuvem interna, o faz tão somente procurando-se externamente nos objetos, e lhe é tão imperceptível esta ação que só virá a percebe-la quando já não se reconheça.

Mas essa tentativa de experienciar-se ou experimentar-se, creio eu, não deve se dar pelo intermédio de objetos fora do ser, mesmo que eles nos afirmem, assim como mediante um espelho podemos confirmar que nosso rosto segue em seu devido lugar; a experiência mesma do ser ou a resposta que procuramos para entender o que somos, entender o que queremos, amamos, desejamos, tudo isso certamente não está em arremessar nosso ser como um boomerang nas coisas: dessa forma sempre voltamos ao lugar em que começamos.

Por isso aqui defendo uma tentativa de vivência de uma experiência que suprima ao Eu a mero receptor dela e não a um interprete ou um agente transformador dela. Vamos lá.

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Gostaria de deixar assentado que tenho dois costumes que considero péssimos: o primeiro é o de complexificar tudo o que quero dizer e o segundo é o de tentar explicar aquilo que complexifiquei.

Por isso no início do texto falo que esse não é um texto para todos, por que de alguma forma sinto que mesmo sendo um pouco obscuro com o que digo, haverá uma compreensão íntima por parte daqueles pobres diabos que se auto-analisam como se analisam ratos de laboratório.

Eu me sinto meu próprio rato de laboratório e já cheguei a pensar-me como um rato-dúvida, mas não era sobre isso que falávamos.

Há duas esferas que estão em conflito nisso que descrevo: Uma delas é a de experienciar os fenômenos que ocorrem fora do ser e a outra é a de procurar respostas para as questões existenciais que se dão internamente. É evidente a distinção entre o interno e o externo e a intrigante relação entre estes dois planos, e isso não tem nada de novo pra ninguém.

O problema, eu vós revelo, é com a gravidade que se consideram as questões internas que se tem, o que leva a sentir que não se está conseguindo captar completamente aquilo que se passa externamente.

Este sintoma, talvez o compartilhes, é o de sentir-se ensimesmado.

Mas por quê se dá tanto valor aos nossos pensamentos que são de ordem não-material, abstrata, e relegamos o plano externo a um mero background de nossas angústias?

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Penso que para responder a essa pergunta primeiro tenhamos que entender o que é a vivência total ou experiência total dos eventos externos de que estou falando. Pois, que não podemos livrar-nos de nós mesmos todos o já comprovamos, mas então, como poderá ser possível esta interação com a realidade externa de forma a suprimirmos nosso ser e abraçarmos a total experiência?

A brisa de um final de tarde, para ser desfrutada, não precisa ser contemplada e nem pensada desde sua existência ou sua fugacidade ou sobre como a pele reage ao senti-la. Claro que para experienciar o vento eu preciso de um corpo sensível que seja afetado pela corrente de ar; mas preciso eu compreender o que o vento é para experienciar o vento?

É aqui que entendo que para experienciar totalmente a brisa de vento é preciso ser a brisa de vento; ou seja, relegar a experiência à experiência em si mesma.

O que quero dizer com isso é que toda experiência externa que vivencio pelos meus sentidos deve ser retida neste plano externo e não converter-se em um cenário para a minha subjetividade que se dilata cada vez mais e me nega a presentificação do momento, a qual me nega a experiência em si.

Toda vez que interiorizo eu conceitualizo, torno consciente, portanto o evento adquire um espaço e um tempo, assim se submete à determinação humana, portanto, parece que se perde.

“Homem Face a Face com o Abismo”, Susano Correia

Em meus textos reclamo constantemente da angústia de viver experiências que nunca se totalizam,

e é verdade que em tudo que vivemos existe um resto, uma fuligem que se escapa, algo que ficou de fora e que não permite ao círculo fechar-se completamente. A experiência é essa nota dissonante que contém inúmeros sons mas que não conseguimos defini-la, não há barreira ou limite que a encerre em uma fórmula final.

De qualquer forma, o sentimento de não estar vivendo a experiência em sua totalidade é acentuado por uma espécie de tecido que encobre tudo o que o rato-dúvida percebe, e isto por que ele está sumamente preocupado com suas questões internas.

Provavelmente ele não deseja estar voltado para dentro, mas o faz por ou ser um neurótico-obsessivo ou por que a sua procura é levada às últimas instâncias do ser. Então será inevitável que este rato-dúvida almeje alcançar uma experiência em si mesma: na qual ele não se veja replicado nas correntezas da água ou na cor chamativa de uma flor, podendo assim dissipar a nuvem de poeira que lhe nega enxergar algo além de si mesmo.

Aqui não estou afirmando que para viver a experiência eu não possa pensá-la ou refletir sobre ela, mas sim que no momento exato em que se vive a experiência qualquer espécie de internalização se torna em apreensão: na tentativa de encerrar o momento ou prolongá-lo, onde frases como estas surgem: “Como queria que este momento durasse mais”, “Não quero que isto acabe”, “Aonde isto me levará?”. E estes casos são reações comuns que todos temos, e que, de alguma forma, mesmo que neste momento a experiência se rompa, ela foi experimentada, em sua superfície, mas foi alcançada.

O rato-dúvida não alcança sequer a sua superfície, pois antes de vivencia-la, almeja vivencia-la, pois quer sair de dentro de si com todas suas forças, e com isso adentra a experiência consciente dela e a encapsula em uma determinação que ele lhe da: e esta é a forma mais angustiante de viver a experiência.

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Certa vez, uma amiga me pergunta:

— Quanto cabe em um momento?

E talvez essa seja a pergunta por excelência da existência.

Eu sei que a experiência deixa de ser vivida no momento exato em que a pensamos; pois o pensamento sempre é uma rememoração: é a análise de um evento precedente, e, para mim, a experiência totalizadora é a completa falta de cognição daquilo que ocorre, é ser-se o momento, o espaço-tempo presente, sem racionalização, sem contemplação, vive-se sem entender, sem compreender aquilo que se esta experienciando. E essa será para mim a forma mais pura da felicidade: não saber que se está feliz.

E não falo na experiência hedonista de viver e sentir pelo prazer como fim último, mas falo em uma experiência que nos seja pacífica, que possamos desfrutar sem ensimesmamento e realmente sentir que estamos vivenciando-a. Tampouco falo aqui em uma experiência inconsciente, desprovida de julgamento e avaliação; isso seria possível pelo uso de narcóticos, mas não seria uma experiência natural e não é a experiência que procuro.

“Autoanálise”, Susano Correia

O que tento é encontrar uma experiência completa sem alienação, uma experiência desinteressada, sem almejar futuro ou recordar o passado; uma experiência que não se veja como possibilidade de algo novo e melhor mas como experiência que se realize em seu acontecimento e não deixe fios soltos aos quais nos agarraremos depois.

Esta será uma experiência que inevitavelmente anulará ao Eu, o suprimará a um mero receptáculo de seu acontecimento e não o centro neurálgico dele, como comumente o fazemos os rato-dúvidas e a maior parte das pessoas.

A experiência nesta concepção em que a coloco é aberta, sem possibilidade de prolongamento ou supressão, ela própria se realiza sem a necessidade de controle por quem a vivencia. E este é um ponto importante que não me prolongarei mas que cabe demarcar: a necessidade de controlar o incontrolável que temos, de condicionar tudo ao nosso domínio, ao nosso poder, quanta enganação vivemos!

5

Alguns meses atrás escrevi um texto chamado: “El arte para los niños”, onde eu analiso um evento banal e inadvertido que ocorreu com uma pequena prima que tenho, chamada de Tania.

Em uma brincadeira com minha mãe e uma tia, Tania, que tinha apenas 2 anos na época, foi perguntada por minha mãe se ela sabia distinguir qual era o nome das suas duas tias. A pergunta de minha mãe a Tania foi assim:

— Quem é a tia Luci, ela ou eu? Perguntou estando ao lado de minha outra tia, chamada Carolina.

Tania ergueu seu bracinho e apontando à minha mãe, que se chama Luciana, lhe disse:

— Eu!

A partir desse evento pude pensar um pouco sobre o desenvolvimento da relação de nosso Eu com o mundo externo.

Penso que as associações internas do Eu que se fazem com o externo, para as crianças, ainda não se faz imposição. O que quero dizer é que as associações que fazemos com o que ocorre no mundo a uma certa idade em que o Eu se desenvolveu de forma mais concreta se fazem sobretudo a experiências e imagens que nós mesmos já vivemos, então recorremos os mesmos caminhos que nos levam a um ponto em comum e esse ponto somos nós mesmos.

Para a criança ainda não existe um Eu ou um Tu, então nada se lhe interpõe ao olhar para o mundo, pois tudo é novo e todos os caminhos são caminhos a serem percorridos.

Na psicologia se utiliza uma metáfora sobre caminhos mentais e associações que acredito que ajude a compreender o que digo: Pensa-se em um caminho de neve, branco e liso, que não tem nenhuma marca ou rasto.

Quando experiencia-se algo, cria-se um pequeno rasto, que conforme o tempo, pode apagar-se ou tornar-se mais profundo dependendo da importância deste evento.

Em um pensamento obsessivo, por exemplo, recorreremos sempre um mesmo caminho, que por mais que não tenha nada que ver com aquilo que experienciamos, nos levaremos novamente por ele, de forma quase automática. E assim o deixaremos mais profundo e conhecido para nós.

A terapia deve servir como a guia para caminhos que deixamos de percorrer ao recorrermos sempre um mesmo caminho que nos leva a um mesmo lugar conhecido.

Retornando ao conflito de nosso rato-dúvida com as experiências e sua frustração e angústia por sentir que não as alcança; pensamos que para ele o Eu sempre se faz imposição sobre os eventos externos, certo.

Ele se procura e se replica como um espelho em todas as coisas que estão fora dele e o faz pois esta é a sua única forma de relacionar-se com o mundo, pois está preso a si mesmo.

Podemos pensar ao rato-dúvida como um andarilho de um mesmo caminho que o leva sempre a um mesmo lugar interno em todas suas interações com o mundo externo. Este, é um caminho que o faz voltar sempre a sua obsessão principal, a qual provavelmente esta escondida sob formas as mais diversas.

Acredito que o cerne da questão está em que este rato-dúvida terá inúmeras dúvidas que o inundam e que o voltam para dentro, de todo tipo serão estas dúvidas, mas todas elas convergem a um lugar essencial, que, se alcançado, talvez o libertará.

Seu conflito com a realidade externa e a sua condensada subjetividade pode ser explicada por esta obsessão que se esconde e que o faz viver interiormente, obrigando-o a encarar-se e a responder ao seu Eu mais íntimo as perguntas que mais o perturbam.

E qual será a saída para o rato-dúvida?

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Borges falava sobre a arte como aquilo que deve ser “un espejo para uno mismo” ou, ainda mais enfaticamente:

“Um homem se propõe a missão de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de bahias, de naves, de ilhas, de peixes, de habitações, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de sua cara.”

Epílogo ‘El Hacedor’.

Jorge Luis Borges

Aqui encontramos a arte como ponte para nós mesmos, de forma a que ela é um veículo para que nos aproximemos de nossa essência, se é que há uma.

A distinção entre esta forma de relação com o que há fora de nós mesmos é que aqui estamos escolhendo conhecer-nos, ou talvez sequer entendamos isto, e pensamos na arte como algo que nos apazigua e nos leva à supressão de pensamentos e ideias obsessivas. Nela encontrei, e acredito que muitos dos rato-dúvidas o conseguiram, a forma de sair de mim mesmo e interagir com o mundo fora de mim; pela criação e pela exteriorização eu me escapo (será esta a palavra?) por alguns instantes daquele que é fixado em suas dúvidas e traumas e que sofre por sentir que não está completamente vivo, que jamais absorve o suco da vida em sua forma pura, que tudo o que se lhe aproxima ele o contamina com suas questões irrelevantes e com esse vírus parasitário que é a condensação do Eu sob a forma de uma gosma pegajosa que cobre tudo com sua viscosidade e a confusão de suas múltiplas origens e cores e funcionamento.

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Não farei aqui uma conclusão pois não há conclusão nem porta que nos resgate de uma condição deste tipo. Penso que a autoprocura ou a autoanálise deve ser levada com cuidado. Nietzsche o declarara:

Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E, se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.”

Ou, um dos conselhos mais sadios que meu discreto pai já me fez: “Não te faz tantas perguntas, meu filho querido.”

Não digo que não devamos procurar-nos ou que não procuremos as linhas que traçam a íntima imagem de nosso ser; mas que o façamos sem precisar desintegrar o mundo à nossa volta e transformá-lo em um espelho para nós mesmos.

Inverno de 2022.

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