Filho-Anzol
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Eu sei que entreguei muito pouco às expectativas paternas, e talvez, às maternas também. Não fui o jogador de basquete que meu pai esperava que eu fosse e tampouco o pianista que ambos algum dia almejaram. Mas deve existir uma separação, um desprendimento do anzol que os pais jogam ao mundo esperando que este lhes traga uma recompensa; mas a devolução não pode ser condição de existência, essa expectativa de regresso, de payback pela dádiva da vida. De alguma forma, todos esperamos algo dos outros e nossos pais também esperam algo de seus anzóis. Certo dia uma jovem canadense chamada Laurence me pergunta: Existe alguma relação humana que não espere nada em retorno do outro? E declarou que a única relação que não espera o troco é a dos animais, a que não almeja a indenização, o reembolso tácito e sútil.
Se te dou a vida como é que não me dás uma satisfação a mim? Isso dizem os pais, e nós, os anzóis, temos de prevalecer em um mundo em que se espera algo de nós, sim, espera-se que devolvamos algo, não ao mundo, mas em primeiro lugar aos nossos pais, e é ai onde começam os problemas. Eu sabia que morar em casa dos meus pais já estava me adoecendo, um lento e progressivo adoecimento, que não era expresso em palavras, mas sim em respostas agressivas, em uma linguagem que me saia sem pensar. Certo dia lhe disse a meu pai que para mim ele era um fracasso. E era como o grito do adolescente que diz odiar ao seu pai ou a sua mãe, um grito tardio, mas necessário. Eu falava com Amaury, um velho querido que trabalhava no bar do alemão, e lhe comentava sobre meus sentimentos; falar com os bêbados é um remédio que as consultas caras de minha psicóloga já não alcançavam.
— Olha Cadmo… a gente não pode aceitar tudo que nossos país pedem ou esperam da gente. Deve haver a ruptura, deve haver desencontro, o pássaro finalmente pula do ninho, a teia se rompe, hah! e isto é agressivo, sim, será uma saída violenta se o muro o exige, pois devemos romper com tudo, até com a mamãe… mas se há abertura, poderemos ter algo pacífico.
— Eu já estou rompendo com tudo Amaury, daqui a pouco vou virar um bola de fogo… será que tem um negócio com ser o filho menor? To sempre querendo me aprovar nos testes dos meus pais… e tudo vira essa competição com meu irmão mais velho.
— Já te expliquei que existe a condição do irmão menor, esse… hmmm… complexo, digamos… Tinha um filósofo que falava sobre isto, não vou me lembrar do nome dele, mas é… enfim, tem isqueiro?
O velho Amaury perdia os raciocínios rapidamente, e se esquecia do que dizia em instantes, prontamente acendia o seu cigarro e tomava um longo gole de sua cerveja, sempre argentina, podia ser Patagonia, Patrícia, e talvez o fato de eu ser argentino fosse o único que o fazia me revelar as verdades que guardava por baixo de suas barbas.
— Mas então, o que falávamos…? é, é um complexo do caçula, tu sabes do que falo? Claro que sabes… e normalmente esse caçula vira o rebeldinho, a ovelha negra da família, vai e faz merda, se droga ou vira um problemático.
— É… pode ser que sim Amaury, eu sinceramente comecei a me sentir meio saído da família a alguns anos…
— Então Cadmo… é o que te falo! Vocês, os caçula, eu também, eu sou caçulinha, eu quis matar meu irmão mais velho, vish… era outra época muleque, eu quase matei meu irmão… que loucura! E tudo porque minha mãe dava o leite pra ele primeiro na mesa, sempre o copo dele primeiro… eu sabia que aquele ato não era desinteressado, sem sentido… o caçula está condenado a ser um obsessivo Cadmo!
Seus olhos brilhavam enquanto falava, e seu rosto sujo de graxa e já curtido do sol o fazia uma espécie de Diógenes de nosso tempo. Era realmente incrível ouvir ao velho Amaury, sem sequer pensar ele me regalava uma lição poderosa, e aquele seu intervalo de quinze minutos valia cada segundo para mim, mesmo que fosse tão insignificante para ele. A chapa o esperava, ele sempre com a toalhinha branca no ombro, nem usava toca para os cabelos pois lhe sobravam uns poucos.
— Cara… tem cigarro? Lhe pedi.
— Já, já… trés bien! Me respondeu, tentando um francês chinelão, só porque ele tinha nome francês.