Heraclíto

1
Não iniciarei o relato com a descrição patética de um dia cinza que havia me deixado extremamente nostálgico e insuportável a mim mesmo ao ponto de me fazer sair do meu quarto e caminhar pela cidade. Tampouco vou começar descrevendo que tudo se passou em uma época distante e que hoje me encontro completamente transformado pelo que aconteceu. O que aconteceu foi sumamente literário e digno de uma ficção, tanto é que agora me sento pra escrever sobre o que ocorreu e me penso como um gordo que usa cabelo comprido e vai à cafés conversar sobre a situação geopolítica da Rússia. Então, sim, essa história se lê como se leem histórias sobre fantasmas do século XIX, por isso não vou solicitar a confiança de um leitor cansado de histórias previsíveis, de rupturas que se revelam assombrosas mas ao mesmo tempo habituais, quase repetitivas. Não quero fisgar teus olhos com mais uma narrativa empobrecida que te livre por alguns instantes de ir dormir e por fim acabar com a angústia que é o término de mais um dia. Vou ser sincero e contar tudo exatamente como aconteceu. Sem suspense nem personagens míticos. Estou cansado, então estou escrevendo com raiva.
Não quero esquecer sequer de um detalhe disso que me aconteceu.
2
Como eu disse, vou ser verdadeiro. Eu estava assistindo pornô depois de ter almoçado, já me preparando pra me masturbar mais uma vez quando algo me fez pausar aquele vídeo nojento e me carregou até a rua. As coisas se dão assim, como em um filme, sem preparação. Havia muita gente na rua, o aniversário de 250 anos da cidade acontecia e um rebuliço de gentes de todas as espécies justificavam com essa data irrelevante sair das suas casas.
Peguei o celular imediatamente que percebi que estava caminhando sozinho em torno de todas aquelas pessoas. Chamei minha namorada, depois alguns amigos, até a minha mãe não se salvou. Tentei organizar algum programa que não me destinasse um banco de praça, um livro que eu não leria inerte em minha mão e cachorros latindo sem parar enquanto digo que “não tenho nada irmão, final de mês é foda” pra mendigos que me pedem dinheiro. Mas por algum motivo não quis me livrar completamente de mim; talvez pelo desafio, talvez por me experimentar um pouco, saciar minha sede íntima; então decidi me levar pelas ruas, sorrir aos cachorros, conversar com um mendigo ou acalmar alguma velha desesperada por achar um livro do Irving Yaloom em um sebo cansado.
Bioy e Borges recomendam em sua lista de proibições — “Na literatura deve-se evitar” — que não se descreva exaustivamente o clima e as circunstâncias do lugar em que se está passando a trama, mas devo relevar por alguns instantes essas recomendações e dissertar sobre o dia que se respirava naquele sábado, porque acho que de alguma maneira isso está relacionado com o que aconteceu, ou pelo menos é o que quero acreditar.
Não é que o dia estivesse cinza, era como um azul apagado, um azul de cego, e desses que te deixam letárgico, com mais tendencias a pensar tragédias e a xingar qualquer velho que te mal encare na rua. Eu tava assim: Imaginando alguém vindo me assaltar e eu me lançando no filho da puta e asfixiando ele até a morte, mas também se misturavam a esses pensamentos violentos algumas descrições poéticas que eu sempre faço oralmente enquanto caminho sem ninguém do meu lado e sem música nos meus ouvidos.
3
Não faço questão de mencionar as ruas em que eu estava caminhando, qualquer um que conheça Porto alegre sabe que a cidade nos sábados é melancólica e que todas as ruas se parecem. O sábado à tarde com a ameaça de uma chuva que nunca chega é causa de suspiros longos. Ninguém se arrisca a sair pra rua com o advento da chuva, preferem, no entanto, se enfiar como formigas em shoppings, galerias e restaurantes, fazendo um murmúrio insuportável. Outros, como eu e minha família, ficam em casa o dia inteiro, prorrogando trabalhos da faculdade ou ansiando que alguém te convide para sair a algum lugar. A angústia é o medo do término, dizia Freud, mas nessa cidade minha angústia cresce conforme esse tempo imóvel se move, tempo que parece nunca ser completamente aproveitado, então, espírito inconformado começa a procurar lugares que nunca tenha ido: olha-se o cartaz do cinema, as sessões de teatro ou algum concerto perdido, mas Porto Alegre, ah… é uma cidade misteriosa, deve-se procurar microscopicamente aquilo que se deseja, se não, acaba-se por ir sempre aos mesmos lugares pelo medo paralisador de gastar uma grana e depois sentir dor de corno. Então a vida aqui se vive desse modo, a menos que se tenha um impulso criador de se reerguer e expulsar a imobilidade da casa, ou de si mesmo, e sair à rua, mesmo que seja como em meu caso, caminhando sem rumo.
4
Heraclíto era um velho completamente louco. Andava com uma bengala grossa de eucalipto, que segundo dizia, foi trazida por Francis Drake em um dos navios que vinham da Holanda para os portos do Rio de Janeiro. Costumava ir à Redenção caminhar com um cachorro cego, desses que te deixam com a mão fedida o dia inteiro só de acariciar a cabeça.
Como posso explicar que acabei me sentando no mesmo banco que este velho, e que, algumas horas depois, acabei entrando em sua casa?
É importante ressaltar que eu estava nesses dias em que não se medem perigos nem se pensa demais na própria segurança. E especificamente naquele dia eu saí com o punho fechado louco pra dar um soco em um garçom que me tratasse de vagabundo; então eu ter confiado ao velho Heraclíto que eu me encontrava angustiado e exausto do meu trabalho, da minha faculdade e da minha vida e que eu tava pensando em largar tudo e partir em uma viagem sem passagem de volta, foi um ato sumamente influenciado por aquele dia cimentoso, em que a sinceridade tinha consumido meu sangue e se expressava através de mim sem que eu o pensasse sequer.
— Não te esqueça de uma coisa filho, aqueles que mudam de céu não mudam de alma. Me disse o velho Heraclíto.
Eu sorri amargamente, pressenti um longo sermão sobre a sua árdua vida, sobre como havia sofrido e lutado contra os males que acometem todo humano que vêm ao mundo, mas ele só disse isso e ficou quieto, com as pernas cruzadas, fumando um cigarro com um cheiro forte demais.
Suspirava a fumaça e olhava pro céu, olhava pras pernas das mulheres, coçava a testa, me olhava de revesgueio e continuava a contemplar as pessoas que passeavam, diluído naquele rincão do mundo. De repente interrompeu o silêncio e me contou uma história sobre de onde vem as pessoas.
— Todo esse povo, hmm, tu acha que vêm d’onde? Vêm tudo do sonho, do espírito substância, movimento eterno… Vou te contar uma coisa filho, somente se queima quem acredita que o fogo queima. Eu nasci do sonho d’um outro homem, e ele, pra me conceber, teve que fazê um arranjo, sabe? É longa história, e eu falo sério sobre isso, falo porque de todas essas pessoas, a única que saiu de casa pra olhar pro interiô do coração se sentou nesse banco, aqui do meu lado, e abriu um livro pra se entedê: esse foi tu! Mas de tanto que ta goniado, os olho vão pa dentro, e ai não tem natureza que exista, não tem livro pra-se lê. O livro mermo ta dentro da gente, sabe?
Tô te contando que esse homem que me criou no sonho dele fez arranjo cum deus de por ai, tanto deus q’tem, mas esse aí eu sei que chama Îgnis. O deus concedeu meu nascimento, mais só com uma condição, só uma só, e foi que todas criatura do mundo me visse como um ser de verdade, mas que só o fogo e meu criador saberiam que eu sô sonhado, sou feito da matéria do sonho.
Nessa altura eu já tava me mijando, mas ouvi todo o relato desse velho louco. O cachorro tava de língua de fora morrendo de sede e eu acompanhei os dois até o laguinho que tem pro cachorro tomar água. O velho Heraclíto percebeu meu ceticismo diante daquela história e revelou uma lucidez que me assustou:
–Vô te fala que anda toda gente tão apegada nesses filme sobre fato real, nesses dado histórico e estatística verdadeira que tão tudinho se esquecendo que nada disso carrega elas da cama pro trabaio. O que move ser humano é a estória, é enigma.
5
Perguntei ao velho da onde vinha seu nome estranho. Eu já ouvira falar desse nome no colégio, na aula de filosofia do profe Girafa, mas Heraclíto, o velho da redenção, não era filósofo pré-socrático nem nada, foi sua mãe que lhe colocou esse nome porque havia lido em uma revista que segundo um tal de Heráclito da Grécia, os rios das cidades mudam sempre de águas, estão sempre fluindo. Então ela assegurou que é seguro lavar a roupa em todo rio, também tomar a água dele, porque quando lava, lava com água boa, limpa, e quando toma, também. Então deu esse nome ao seu filho, pra que ele abençoasse todo rio.
6
Fomos andando e eu lhe contei sobre minha ideia de que as pessoas andam infelizes porque vivem a ilusão do ontem e do amanhã, e que isso se dá porque somente percebem uma gradação de realidade que viveram, em câmbio eu, eu desejo viver o espectro todo, as múltiplas camadas de realidade que existem, porque quando nos colocam diante da fórmula do cidadão comum, aquele que trabalha todo dia na mesma mesa, no mesmo escritório, com a colega de trabalho que lhe dá nos nervos, com as mesmas vozes sem música que emitem seus chefes e a clientela cinza, este irá se agarrar a alguma fantasia, provavelmente sexual, algo que lhe desperte a saliva da boca e o coloque em um pedestal, seduzido por aplausos e lágrimas, talvez fantasie com a sua morte, súbita e repentina, a memória de seus feitos, o luto de seus familiares e amigos, algo que o nutra de uma singularidade que o justifique, que o seja ser algo mais que uma tecla de piano.
Então sei que esta fantasia se torna asfixiante quando este indivíduo formulou uma esteira de uma só direção em sua vida, tornando-se um romântico, um apaixonado pelo seu passado ou iludido pela ideia de um dia tornar-se o almejado e irreverente ser que fantasia em seu trágico caminhar. Heraclíto me ouvira sem dizer palavra e sorriu quando eu lhe disse que esta teoria eu que tinha pensado, sozinho.
7
Cheguei à entrada de sua casa e ele me pediu que eu ficasse quieto por alguns instantes. O velho me prometera comprovar sua estória ridícula sobre haver nascido do sonho de um homem, e que eu me surpreenderia com a invalidade das certezas que circulam nos ares da cidade. Eu não vou justificar ao leitor perverso, que como eu também o pensou, minha ida à casa de um velho desconhecido. Prefiro deixá-lo divagar em seus cativeiros que teme olhar, mas que a sua mente insiste em retornar toda vez que imagina a sordidez com que os seres humanos se relacionam. Eu chegara àquela casa com raiva do velho Heraclíto, e pensando que ou eu ou ele me mataria. Se o velho era um sádico, um asqueroso estuprador ou um doente mental eu o descobriria quando entrasse nessa casa imunda que a porta rangente revelava.
O interior estava escuro, mas podiam ver-se as paredes queimadas, com marcas enormes de uma queimação que parecia haver acontecido séculos antes.
— Foi aqui onde meu sonhador me sonhou. Sussurrou Heraclíto.
Me levou à cozinha, e foi lá onde tive a primeira sensação de que este velho iria me arrancar os membros do corpo. As panelas estavam empilhadas, umas em cima das outras, com arroz queimado, com moscas e mosquitos, larvas e formigas por todos os lados corriam. O velho mantinha uma seriedade e sobriedade que me passavam segurança.
Pensei em um filme de terror que havia visto anos antes e isso me fez arrepiar, mas ainda me seduzia a ideia de entender mais sobre este velho. Heraclíto me perguntou se eu possuía um isqueiro, e eu lhe disse que eu não fumava.
— Uma coisa não se relaciona à outra. Sentenciou.
Então pegou uma caixa de fósforos que estavam em um armário cheio de lâmpadas e fios e o acendeu em meio à cozinha. Aquela luz iluminou o lugar todo, e revelou o piso inteiramente preto, queimado e sujo, também janelas sem vidro que antes estavam escondidas, com seus marcos rachados e apodrecidos, com as cortinas rasgadas e quase extintas.
Heraclíto me explicou que aquele fogo não queimava, pelo menos não a ele, e serenamente o posicionou na palma de sua mão e ficou imóvel. Eu, estático, tentei entender como seu corpo não repelia aquela chama. Então o fósforo foi se desfazendo na outra mão que o segurava, e ele rapidamente o levou ao tecido de sua camisa. Em todo momento Heraclíto me olhava, como se me dissesse: “Viu, quê é que eu te disse?”.
Então a manga de sua camisa de linho rosado começou lentamente a pegar fogo, e impiedoso como é, foi consumindo cada fio, cada centímetro de sua extensão. Logo, quando já todo seu tronco estava sob chamas, também sua calça jeans folgada, sua cinta de couro argentino com fivela de prata começaram a arder, e, de repente, o homem começa a me olhar com uma cara diferente, cara de apavoro, como se percebesse o que estava acontecendo, e eu me desespero, e ele começa a gritar, a bater em seu corpo, e eu não acho nada pra apagar o fogo que consumia aquele velho louco, louco, matéria do sonho é o caralho, o velho tava pegando fogo na minha frente e não tinha nem um copo d’agua pra apagar as chamas que dilaceravam a carne desse velho, e eu que tinha me enfiado nessa casa abandonada, nesse reduto que em algum dia havia sido o local de um incêndio, e agora o velho Heraclíto se extinguia, e meus olhos choravam as lágrimas ardentes que queimavam a fantasia de um velho maluco.
8
Heráclito de Éfeso, também conhecido como “O obscuro”, vivera na cidade de Éfeso, no século VI a.C. Relata-se que vivia no alto de uma montanha, e que, em certa noite, o visitaram dois viajantes em sua casa. Seu criado os fez esperar na antessala, onde havia somente um assento, uma porta de madeira maciça e uma lareira. Conta-se que os homens esperaram por longo tempo na antessala, e que o fogo fazia crepitar a lenha com violenta tenacidade.
Primavera 2022.