Pobre-diabo-exaurido-da-sua-vida-comum

Francisco Arozena
3/6/2023

Uma vida de merda... sim, uma vida infestada de ratos e serpentes, uma imagem apocalíptica que nunca foi descrita em nenhuma bíblia ou livro religioso, vida precária e irrisória, a vida-pequena, a vida idealizada, vida estruturada, vida de filmes e livros românticos, vida de gente que toma duchas pela manhã e escova os dentes depois do almoço; vida de gente que dorme cedo ao Domingo para acordar pronto para mais uma semana, vida de quem planeja viagens com agências. O forno, a geladeira, as cadeiras e a mesa, uma televisão, dois quartos, dois filhos e a esposa, a ducha elétrica, arrumar o armário do gurizinho que havia se emperrado, trocar as lâmpadas da cozinha que começavam a fenecer, esperar o jornal pela manhã... Conversas vagas, tempo vazio, vazio, inócuo. Então ao trabalho, trabalhar por horas e esperar que cheguem às vésperas dos feriados para poder tomar vinho e assistir filmes ou ver alguma reportagem sobre a fome na África. A janta, a louça, os pratos, um a um, os pratos, depois disso viriam copos, copos e mais copos, facas, garfos, garfos e facas, facas e garfos, colheres, grandes e pequenas, o barulho intermitente da geladeira e do lava-roupas ao fundo.  Neste momento, cessava um pouco a angústia, nesta inércia do movimento de lavar, enxaguar, higienizar, era como que um ato mental: limpar a imagem, limpar a imagem dessa vida,

Angustiante vida.

E por mais que não sejamos adeptos à poesia, chegará o momento em que nos curvaremos a ela e tomaremos de sua mão para embarcar em seu violento e perene exercício. Lhe disse certa vez um homem viajante que o viu e o definiu como um pobre-diabo-exaurido-da-sua-vida-comum.

Impensável seria deduzir que Alberto tomaria alguma decisão violenta; a violência é necessária, sim, necessária para abrir frestas, a violência abrirá a crosta que tampa as possibilidades, a rhebolúsíóm, o grito, a desmedida. Te falta desmedida Alberto! Te o digo daqui, como teu narrador, como aquele que há de contar tua história sem poupar aos leitores de cada desventura com que tens levado tua pobre e comum vida. Me das angústias Alberto.  A ele lhe doía especialmente as palavras que o remetem a sua condição de comum, tais são elas: Ordinário, fracassado, cagão, broxa, medroso, fode-fofo.

Tentarei evitá-las.

Não, esta não será uma história de um grito, de uma afirmação Nietzscheana da vida, por mais que eu gostasse que assim o fosse, pois eu que conto isto o conto desde o lugar de um afirmador da vida, daquele que tenta dizer sim para cada experiência que a vida me proporciona, sem negar-me, sem negar minha Vontade, sem esquivar-me de minha responsabilidade que é também minha liberdade.

Alberto teve uma aparição quando era criança, ele a contava a seus colegas, a seus pais, mas a única que acreditou nele foi sua avó. A aparição mostrou-se em uma manhã em que as nuvens do sono enublavam a vista infantil de Alberto; o que lhe apareceu era como que uma sombra, parecida a um anjo ou a um diabo, isto tanto faz, e Alberto sentiu um medo que jamais antes sentira, logo, as palavras que lhe disse a aparição foram simples e inesquecíveis:

torna-te quem tu és.

Temos de recordar que Alberto nunca teve acesso a uma educação ou formação intelectual decente, sua familiaridade com a filosofia era nula, jamais ouvira sequer menções a Platão e muito menos a Nietzsche. Esta talvez haja sido a sua grande condena, pois a aparição lhe revela com esta frase uma forma de viver a vida e não de alcançar-se ao fim do túnel, não há um Alberto escondido por trás de todas as máscaras que vestiu, nem um Alberto a ser encontrado em meio a um labirinto de espelhos, um Alberto final, acabado, resolvido com suas inadequações e neuroses. Não existe um modelo-Alberto de ser.  Ele deveria buscá-lo infindavelmente, buscar-se como se buscam os andróginos de Aristófanes mas sem a pretensão de completar-se, afirmar-se como um incompleto, afirmar-se como aquele que jamais poderá desvendar-se completamente... mas por onde começar?

Sua vó, Hilda, ouviu o relato de Alberto, sabia que ele somente viria a compreender a força destas palavras quanto mais coisas vivesse, pois tornar-se quem se é não se faz desde o quarto de nossa casa: é necessário viver, maximizar as experiências, maximizar as possibilidades, dizer sim e sim e sim, até ao não tens de dizer sim. Como poderíamos saber o que somos sem haver antes tentado experimentar tudo o que se apresenta?  Em todo verão, Alberto ia à casa de campo de Hilda passar por lá com a família; Hilda lhe foi como que um espelho, Hilda foi seu exemplo, uma figura que se estendia e se contraía no espírito de Alberto, ela foi a imagem a qual ele admirou desde cedo. Hilda agia conforme ela o fez durante toda sua vida: foi uma afirmadora do espírito, das pulsões, da felicidade, da tristeza, dos desejos e do temor. Mesmo velha Hilda nunca recuava perante nenhum desafio ou possibilidade, nunca Alberto a ouviu dizer “estou demasiado velha” ou “não tenho idade para isto” ou “não tenho força para aquilo...”.  Certa vez Alberto queria porque queria fazer uma fogueira no pátio. Então chamou sua avó como o sempre fazia quando tinha ideias malucas que não podia confidenciar a qualquer um; ela o olhou com curiosidade, lhe confessou que o fogo poderia vir a expandir-se e causar um grande incêndio na casa pois por aquela região a grama era muito seca e se propagava rapidamente a chama.

Alberto insistiu e insistiu, disse que seria uma fogueira pequena, que ele queria ver o fogo para conhecer o fogo e então Hilda lhe disse novamente o que lhe havia dito anteriormente.  Alberto insistiu mais uma vez e foi então que sua avó lhe disse uma frase que se repetiria na cabeça dele por inúmeros anos:

Eu não estou te impedindo de fazer nada Alberto, o único que se está impedindo és tu mesmo.

Alberto olha para o teto de seu quarto enquanto está deitado ao lado de sua mulher em sua casa e pensa nesta frase, rememora as cores daquele dia em que sua avó lhe disse aquilo, relembra detalhes fúteis mas que lhe traziam paz, ao mesmo tempo lhe dá angústia e lhe faz sentir liberdade, sente que há possibilidades, mas isto acontece toda noite.  É mais ou menos assim: antes de dormir todos somos como reis do mundo, vemos como possível todo empreendimento que nos propomos: é como aquele que olha ao longe para a montanha, a pensa fácil de escalar, está iludido e ludibriado pela embriaguez do sono ou da excitação. Antes de sonhar Alberto tomava decisões para o amanhã, prometia-se promessas como as que os gregos faziam aos Deuses, mas a quem prometemos nós (os contemporâneos) as coisas? Somente a nós mesmos podemos fazer promessas, prometer ao outro é prometer-se a si mesmo, é provocar-se um movimento, é tentar empurrar-se desde o outro lado do muro ou dar-se um pezinho para escalá-lo. “Vou largar tudo, o emprego, meus filhos, minha mulher, esta casa, me vou, me irei” pensava Alberto, e o pensava com uma alegria, com ânsias, com um tesão que não sentia a muito tempo; mesmo transando com sua mulher pensando em outras mulheres (a mulher da academia, a mãe de um dos colegas de seu filho), mesmo quando ia jogar paddle ou ficava bêbado; ele nunca sentia aquela excitação que sentia como quando se prometia à noite coisas que sabia que não cumpriria e quem faz isto não faz mais que dar esperança à si mesmo: o que ele fazia era esperar-se, esperar-se do outro lado do muro, esperar um Alberto que saltaria as grades, que fugiria, que cumpriria com o que dizia, que daria um soco na cara da vida comum, da vida pequena que levava, que mandaria seus filhos e sua mulher ao raio que os partisse; era isto o que ele desejava e que se punia por desejar.

O Alberto que estava do outro lado do muro era um Alberto sem pelos nas línguas, que rompia as cordas do violão e que dançava em cima de mesas, que quebrava pratos e copos e ria, ria na cara do diabo. Era este o Alberto que dominaria o mundo, o seu mundo, o único mundo possível.

Mas e como efetuar tal mudança? Como fazer para que o Alberto que estava do outro lado do muro aparecesse? Será que ele apareceria? Existiria este Alberto que ele esperava?

Lembrava-se de quando era criança, de quando era um adolescente e logo um pós-adolescente, lembrava da fúria com que levava a vida, de experienciar-se em cada gesto, em cada palavra, de deleitar-se com seu poder, com o manancial de desejos que escorriam por seu peito e por sua boca, de seus constantes sins a tudo o que lhe propunha a vida.

Sim, sim, sim, sim, sim, sim.

“Esgotar todas as experiências que me sejam possíveis”: assim vivia Alberto sem haver nunca pensado nesta frase que escorria da filosofia de Camus e de seu mito de Sísifo.  Alberto era afirmação de vida, Alberto era... Alberto... era...

Já foi, já passou. Este Alberto já não é o que foi, não pode esperar-se voltar do passado o Alberto que fora, não pode. A aparição lhe havia dito: torna-te quem tu és, e isto é um caminho contínuo, não fomos o que somos no passado e nem o somos agora, aquele que foi no passado era um, este é outro, e o de amanhã será um novo. Sua nostalgia, suas memórias, tudo isto o consternavam pois ele via este passado glorioso como um ferrão de autodesprezo do qual não se podia livrar, ele o tinha preso, então comparar-se com o que havia sido neste passado de glória lhe resultava ao mesmo tempo prazeroso e doloroso, pois mesmo que lhe tirasse sorrisos pensar-se ansiando pelas meninas que saiam da aula na universidade para leva-las a algum bar ou vendo-se em sua viagem que havia percorrido pela Europa sozinho, amando, chorando, rindo, entrando ao mar pelado, roubando alguma lembrancinha em um museu ou bebendo até cair, tudo isto o fazia feliz e sua maior dor era desprender-se disto, isto que era o que parecia mantê-lo de pé, isto que era como o espelho do qual ele precisava para agora fortalecer-se e pular o muro, para atravessá-lo, romper sua matéria e criar algo novo, criar, algo, novo.

Alberto segue olhando ao teto, agora lhe aparece a imagem de Carolina, Carolina para aqui e Carolina para lá, Carolina em seu peito, o beija, ele a beija, lhe agarra o pescoço, se deslizam nos lençóis, ela o encara com seus olhinhos, ele a encara, ficam um encostado ao outro, se imploram, se desejam, fervor, ardor, intensidade, intensificar... Carolina, que havia sido um dos amores mais pulsantes que Alberto sentira, que a lembrava na escuridão do quarto, entre as linhas do teto, a evocava toda noite, a evocava em seu trabalho, em seus sonhos e então ao soar Bersuit Vergarabat “aquela puta música”, Alberto vertia uma lágrima, uma puta lágrima Alberto, a vertia em um trecho que não deixava de persegui-lo, o trecho que inspirava monges a fugir de mosteiros, que fazia sacolas de plástico virarem pássaros que voam pelas curvas de vento, este trecho que dizia “cambio a toda mi família por un segundo con vos” era uma gota glacial de um fervor infinito, lhe queimava, lhe ardia...  De novo Alberto contempla, Alberto reflete, Alberto, este filósofo que sequer sabe o que é um filósofo, Alberto e sua negação constante à vida, Alberto vivendo fora da vida, Alberto estudando as infindáveis imagens das inacabáveis memórias de sua mente. Sua mente... ah, o que dizer dela... era como que um buraco negro que o sugava para o jogar de volta ao mundo, só que vazio, sem emoção, sem vida, como a mais um dos muitos que andam por ai, vivendo fora da vida, olhando para as inacabáveis memórias dos passados gloriosos que não existem, que já não existem. Se emocionando desde dentro de suas caixolas, se divertindo lá dentro ao invés de cá fora... Alberto...

Que haver acreditado no sistema, que haver acreditado no dinheiro, no trabalho, na família, nos filhos, na felicidade, no amor, nas memórias, nos pais, na televisão, nos políticos, no rádio, no celular, no puto celular, nos planos, nos tempos certos e nos tempos errados...”    Deverias haver feito rock n roll no porão com teus amigos Alberto, mesmo que o futuro não fosse frutuoso, mesmo que as probabilidades não fossem favoráveis; mas como falar em probabilidades na vida? como falar em escolher? como falar em ser consciente? em tomar um rumo, em definir-se, em não se desviar, em ter uma direção: mas que direção!? A vida anda como um bêbado voltando para casa, se tropeça, se cai, cai de uma ponte, se afoga, morre e o resgatam morto, sentem pena e logo se esquecem pois era somente mais um.  És mais um Alberto? A mim não farão acreditar nisto! E que não me venham com essa conversa de humildade nem que humildade, de que sou somente um grão de areia em um universo que é tão imenso que sequer o concebemos. Mas o que é que me interessa este universo? Me interessa meu mundo, minhas possibilidades, minha verdade, me interessa os rumos de minha vida e de minha filosofia de vida, daqueles a quem amo e afeto, daqueles que me afetam.

O discurso que temos, Alberto, é totalmente diferente, e tu sequer o sabes, pois não vês o outro lado, não vês o outro lado do muro e nem deverias poder o ver. Este Alberto que esperas jamais chegará, ele não chega para ninguém, sabes qual é o problema? Esperas ao invés de viver, esperas que chegue esta figura do passado, que chegue esta figura-nada, uma ficção de tua cabeça e então idealizas o futuro e idealizas o passado e nada fazes agora, tens vergonha, tens medo, tens a cabeça como que dentro de um jarro e lhe abres olhos para poder enxergar o espetáculo com que se dá o mundo enquanto tu é jarro, um jarro cinza, sem flores, um jarro que se mexe de vez em quando de lugar, que precisam mexer-te, somente isto, no teatro tu és este objeto que fica em um canto, que ninguém olha, que ninguém toca, e o sós consciente, sós isto por que te submetes a ti mesmo, por que tu mesmo te impedes, como Hilda te o disse, por que tens medo de esquecer daquele que foste e tornar-te um novo Alberto, um Alberto do qual tenhas amor e orgulho de ser, pois somente assim os outros te admirarão como tu admiravas tua avó, tua amada avó a qual vês em teus sonhos, a qual viste naquela aparição, sim, agora o sabes, agora o vês? Era ela, era ela a aparição que te revelou a grande força, a pulsão, a vontade, o caminho fora do caminho, as curvas, as retidões e as passadas ainda não feitas, te revelou um caminho possível, uma vida possível cheia de possibilidades, criadas por ti, por ninguém mais, somente por ti e por tudo o que tu constrói e construiu. Não, não é necessário que sejas ela, não o é, que te tornes naquilo que tua avó foi, esta era ela, era sua forma de tornar-se quem ela é, era seu caminho, não há formulas Alberto, esqueça as formulas, as receitas ou as prescrições, cria tu mesmo, cria, desenha, experimenta, experimenta tudo o que houver a tua disposição, lava-te em experiências, sorri ao sol, abraça a terra, abraça as pessoas, deseja e deseja, alimenta-te da energia que emana de teu sol e do sol dos outros: seja, seja, seja e observa, absorve, absorve sem querer alterar, sem querer transformar aos outros naquilo que tu estas te tornando, naquilo que tu procuras tornar-te, é assim, é assim como a aparição que viste, que de anjo não tinha nada, que de demônio tampouco, talvez estivesse mais para demônio pois assim ela te condenou sem amarrar-te, te colocou no inferno e te mostrou a porta de saída, te mostrou que havia uma forma de sair de lá, de inventar algo novo, de ser-te, a possibilidade de viver conforme teus conformes.

Mas lá foste tu Alberto a ouvir teus pais, a ouvir a televisão, a ouvir o rádio, a ouvir os professores que passavam matéria de vestibular, te esqueceste daquela professora de literatura que mudou tua vida, esqueceste do rock n roll que ouvias voltando da faculdade dançando e gritando a todo pulmões, esqueceste da vez que gritavas na cara de um velho pois estavas tão feliz que não podias conter-te, e tomavas cerveja e ouvias Queen em teus fones e saltavas e te abrias, e disseram-te que eras louco, LOUCO? Acreditas nisto? Que te ajam chamado de louco a ti? Quando estavas mais lúcido que nunca, lúcido da vida! Mas também te esqueceste do espírito de viagem que te invadiu durante teus 20s; vives como se a vida fosse ou o passado ou o futuro, e te projetas como se projeta uma rã que salta de um galho de árvore ao outro, mas ela o faz, ela toma o salto, e tu, tu estás a imaginar como seria, como haveria sido, como foi num passado: já não saltas, já não das o salto!

Alberto segue contemplando o teto; já são quase duas da manhã, ele então pega seu celular, coloca o despertador e põe seu celular para carregar; vira-se para o lado contrário de sua mulher que respira monotonamente e fecha os olhos rotineiramente, tem um pensamento rápido antes de adormecer: “amanhã será um longo dia.”

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