6/5/2023

#12 - Sofre tu também!

Rodión Raskolnikov e Winston Smith, dois personagens da literatura mundial, o que eles tem em comum? A partir da narrativa literária de dois casos de amor vivenciados por estes personagens em livros diferentes, esboço uma hipótese do amor como sofrimento. Estas narrativas são também um eco do veneno que Romeu toma ao acreditar que Julieta estava morta, cometendo assim um ato de amor através do sofrimento compartilhado. O amor pelo outro parece que nos diz: toma tu também este veneno, pois assim tudo será mais leve para mim! O amor é muitas coisas, mas podemos dizer que ele é um sofrimento em conjunto? Bora descobrir…
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Te desafiamos a refletir uma vez por semana sobre temas cotidianos tirados de sua normalidade. Se você veio procurando receitas de vida, saia agora! Acreditamos no desenvolvimento de ideias próprias e do pensamento livre e crítico. Não trabalhamos com verdades absolutas nem com fórmulas prontas. Aqui somente desenhamos ideias. Falamos sobre filosofia desde o lugar em que ela nasceu: nas conversas informais na rua, nos problemas do dia a dia. Viver é fazer filosofia. Seja bem-vindo.

Eu sou o Francisco e também o Chico e o Chiquinho. Eu olho pro mundo e questiono ele, aberto a receber todas as possíveis respostas que ele pode me dar.
Eu sou a filosofia que estudo e vivencio, sou as pessoas que me atravessam e sou ainda a criança que eu espero que nunca saia de mim. Sou meus escritos e minhas leituras, sou o amor aos meus pais e a meu irmão, a minhas amizades e a mim mesmo.
Assim, sou muitas coisas e fui outras: ainda serei, espero.
O que sou hoje me faz querer transmitir conhecimento às pessoas, expressar minhas verdades (que são bem fluídas) e aprender com todo aquele que eu conversar. Quero ajudar os outros a encontrarem suas verdades e no caminho também procurar a minha.

Edição dessa semana:

#12 - Sofre tu também!

Investimento: 

Uma confissão

Ródion Raskólnikov.

Personagem do livro Crime e Castigo de Fiódor Dostoiévski

Ródion Raskólnikov.
Ator que protagonizou Raskólnikov na adaptação de Kulidjanov para o cinema

Raskolnikov comete um crime hediondo e sofre de uma culpa que o corroí. Seu empreendimento de levar às últimas consequências a sua teoria de que existem no mundo dois tipos de homens — os ordinários por um lado e os extraordinários do outro, onde os primeiros seriam os que sentem culpa e são como ovelhas de uma manada e aqueles chamados de extraordinários sendo aqueles que como Napoleão, podem levar quinhentos mil homens à morte e sequer se importar com isto — o fez matar duas velhas senhoras para compreender a qual grupo ele pertencia.

Após cometer o crime ele não aguenta o fardo de carregar duas mortes e se joga em uma angústia profunda que o leva a afundar em doença e loucura, comprovando-se em sua teoria como um ser ordinário que não estaria à altura de personagens como Napoleão.

Fiódor Dostoiévski
Fiódor Dostoiévski, escritor do romance “Crime e Castigo”

Sofre tu também, porque, assim tudo se tornará mais leve para mim. “ p. 449.

Toda obra possui espessuras invisíveis. Se o escritor se detivesse a dissertar sobre cada frase ou parágrafo que escreve ele estaria fadado a jamais acabar sua obra. Portanto, isso é um trabalho do leitor que está atento às misteriosas passagens escondidas que frases despretensiosas e aparentemente vazias de conteúdo revelam.

Sofya Marmeladova, prostituta que se apaixona por Raskólnikov, é a pessoa que Raskólnikov acode para libertar-se de sua culpa e do sofrimento que o fustigava. Há algo nos relatos de Dostoiévski onde sempre é às prostitutas a quem os homens revelam-se. Então, Ródion decide contar-lhe que cometeu um crime e que é responsável pela morte das duas velhas senhoras inocentes, tornando Sofya cúmplice de seu crime, portanto, também culpada.

Sua confissão é seguida de uma passagem que para mim é a passagem mais marcante do livro inteiro, Ródion, coberto de magoa e raiva de si mesmo lhe diz assim: “Sofre tu também, porque, assim tudo se tornará mais leve para mim”.

Não é esta frase uma espécie de máxima délfica? Não deveria estar esta frase em umbrais e em capas de livros de autoajuda? Pra mim essa frase diz tantas coisas da condição humana enquanto ser que vive rodeado de Outros que não vejo como contornar sua profundidade.

Protagonista de Winston Smith na adaptação de Radford para o cinema
Protagonista de Winston Smith na adaptação de Radford para o cinema

O gesto ineficaz

Winston Smith.

Personagem do livro 1984 de George Orwell

Winston Smith é assolado por um sonho no meio da noite (que interessante é a revelação nos sonhos) que o faz rememorar um gesto, um simples gesto que se repete ao longo de sua vida em dois episódios marcantes. Ele vive na sociedade distópica do livro 1984, que é regida pela figura do “Big Brother”: um poder autoritário que dominou todas as formas de vida a tal ponto que as pessoas já não possuem liberdade e estão subordinadas à vontade do estado.

“Jamais teria ocorrido a sua mãe que, por ser ineficaz, um ato pudesse perder o sentido. Quando você ama alguém, ama essa pessoa e mesmo não tendo mais nada a oferecer, continua oferecendo-lhe o seu amor.” P. 228.

Winston associa duas memórias a um gesto em comum que para ele parece ser uma síntese do amor: o amor como proteção do outro. Na primeira vez que Winston viu este gesto ele estava em uma sessão de cinema, uma sessão que era organizada pelo partido, a qual estimulava o ódio a grupos que estavam à margem do partido do Big Brother, na segunda vez, ele o viu em sua mãe.

1ª memória: No cinema, Winston assistia um filme, quando uma cena absurda de um helicóptero que atirava em refugiados que estavam em um návio em algum lugar do Mediterrâneo começou a se desenrolar. De repente, aparece uma mãe com seu filho, que era uma criança, e se mostra a cena dela tentando defender ao filho das balas do helicóptero cobrindo ele com seus braços (o gesto ineficaz 1).

George Orwell
George Orwell escritor do livro 1984

2ª memória: Winston era pequeno e não entendia por que em sua casa nunca tinha comida. Isso o enraivecia e o tornava violento, sendo egoísta a ponto de não se importar se sua mãe ou sua irmãzinha comiam. Certa feita, sua mãe havia conseguido uma barra de chocolate, que havia repartido entre Winston e sua irmãzinha, ele em um ato descomedido roubou o chocolate de sua irmã e saiu correndo para comê-la. A sua irmã ficou desolada, chorava aos prantos, sua mãe ao ver que Winston já havia comido a barra não teve outro remédio a não ser abraçar sua filha para consolá-la (gesto ineficaz 2)

Amar: esse sofrimento em conjunto

O amor que eu tenho por ti me faz querer suportar as dores a teu lado. Te ver sofrer me é dificil demais, então eu tomo uma parte dessa dor para mim, eu a faço um pouco minha, assim, sofremos juntos e dessa forma tua dor não é tão pesada, a isso chama-se compaixão

Schopenhauer chama de compaixão a união pelo sofrimento ou a unidade de sofrimento. É horrível ver ao outro sofrer e queremos tomar aquela dor para a gente, queremos fazê-la nossa, e por quê isto? Pois assim o objeto amado não se distancia.

Roland Barthes fala que “a infelicidade do outro tem lugar sem mim, e que ao estar infeliz por si mesmo, o outro me abandona: se ele sofre sem que eu seja a causa disso, é que não conto para ele: seu sofrimento me anula na medida que ele se constitui fora de mim”. (F. Discurso amoroso. p. 48)

Isto porque a dor do outro nunca é exatamente nossa dor, o espelho se contorce, há um borrão, eu sou impermeável, “minha identificação é imperfeita, sou uma mãe (o outro me preocupa), mas uma mãe insuficiente”. Assim, a compaixão parece querer tornar a ambas pessoas que se relacionam nesta dinâmica de um que sofre e outro que consola em um só, uma dor em conjunto, um sofrimento a dois: mas isto é impossível, pois eu não consigo atravessar ao outro, ele me é inalcançável.

Barthes traz uma alternativa que me agrada mas que destrói a imagem de um Romeu e de uma Julieta que se suicidam um pelo outro, ou seja, a imagem mais limítrofe da compaixão, do sofrer pelo outro e padecê-lo como se ele fosse eu e eu fosse ele. Barthes clama que surja a palavra reprimida que vem aos lábios de todo sujeito que sobrevive à morte de um ente amado, o que podemos entender também como à morte de uma relação, ele diz a seguinte palavra: vivamos!

Assim, a gente sofre com o outro, mas “sem se apoiar, sem me perder”. Há algo de muito triste em perder-se na dor do outro, em padecer demais a existência da pessoa e viver suas dores, viver suas angústias.

Cabe aqui uma reflexão nietzscheana que ressalta a importância de não nos consumirmos no outro mas que quanto mais pleno de si estivermos, mais capazes de amar seremos. Tentar que o amor seja uma liberdade para tornar-se quem se é, ou seja, que o amor seja uma plataforma para ambos se encontrarem a si mesmos e não perderem-se um no outro.


*Dedico esta edição ao meu grande amigo Victor. Ele sabe por quê!

Vai pro sebo mais próximo da tua casa ou pega um pdf mesmo! Aqui é a seção:

Bota o cérebro pra trabalhar com a leitura hardcore da semana!

Quero fazer duas recomendações de leitura que estão totalmente relacionadas com a edição desta semana. Ambas leituras me causaram uma profunda reflexão sobre inúmeras coisas, acho que estes livros são atemporais e serão, enquanto houver ser humano na terra, leituras com interpretações possíveis e factíveis.

A primeira delas é o clássico do Dostoiévski “Crime e Castigo” da qual todo mundo já ta careca de saber que é uma história muito fodaa com uma narrativa envolvente, personagens desenvolvidos até o limite possível, enfim, uma literatura da mais poderosa. Leiam!!

A segunda recomendação é outro clássico da literatura universal, o 1984 do George Orwell.

A primeira delas é o clássico do Dostoiévski “Crime e Castigo” da qual todo mundo já ta careca de saber que é uma história muito fodaa com uma narrativa envolvente, personagens desenvolvidos até o limite possível, enfim, uma literatura da mais poderosa. Leiam!!

A segunda recomendação é outro clássico da literatura universal, o 1984 do George Orwell.

Em toda edição organizamos uma coletânea de três recomendações que envolvem: podcast, música e filme ou série, que procuram ser relacionados com o tema da edição da semana, mas que também podem ser aleatórios e serem super legais para refletir um pouquinho.

Filme 🎥

Esse filme é uma comédia romântica argentina que para mim é a melhoooor comédia romântica que já existiu na face do planeta terra! Por favor assistam! Que o outro não seja um túmulo mas uma plataforma para nós mesmos, que nós não salvemos a ninguém e que tampouco ninguém nos salve, mas que nos encontremos, nos procuremos, e que sejamos fieis a nós mesmos! Porra, vai assistir!

Assistir, "Não é Você, Sou Eu"

Você já fez do sofrimento de um outro algo seu? E como tu encara isso? Tu acha que a dor do outro também é nossa dor?

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O que me agrada é pensar que existe para cada pessoa que está no mundo uma filosofia; que a partir de sua individualidade possa refletir e escolher, assim tentando aproximar-se à sua própria verdade.
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Haverá alguma forma de filosofar sobre o basquete? Há alguma forma de respondermos às problemáticas humanas a partir de uma reflexão do jogo de basquete? Quando jogam, as pessoas dizem esquecer-se de todos os problemas, de por alguns momentos terem a impressão de que estão em alguma outra dimensão, em outro plano… mas… não será o próprio basquete uma forma de lidar com a vida ao invés de escapar-se dela? Não será o basquete já nossa vida e nele não estaremos também procurando resolver e compreender os problemas que nos esperam do outro lado das linhas que delimitam o templo que é a quadra de basquete? Assim como o jogo de basquete que se joga em seus quatro quartos, eu pretendo pensar o basquete em 4 textos e mais um, o Overtime.
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