20/5/2023

#14 - A amizade como forma de tornar-se o que se é

Toda vez que a palavra amigo aparecer lembra-te da imagem de teu(s) amigo(s) mais sinceros. Assim, não precisarei fazer distinção entre tipos de amizade tal como Aristóteles o fez. Essa é a maneira mais sincera de começar a pensar os conceitos: não explicando eles, mas vendo-os através de nossa própria lente.
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Te desafiamos a refletir uma vez por semana sobre temas cotidianos tirados de sua normalidade. Se você veio procurando receitas de vida, saia agora! Acreditamos no desenvolvimento de ideias próprias e do pensamento livre e crítico. Não trabalhamos com verdades absolutas nem com fórmulas prontas. Aqui somente desenhamos ideias. Falamos sobre filosofia desde o lugar em que ela nasceu: nas conversas informais na rua, nos problemas do dia a dia. Viver é fazer filosofia. Seja bem-vindo.

Eu sou o Francisco e também o Chico e o Chiquinho. Eu olho pro mundo e questiono ele, aberto a receber todas as possíveis respostas que ele pode me dar.
Eu sou a filosofia que estudo e vivencio, sou as pessoas que me atravessam e sou ainda a criança que eu espero que nunca saia de mim. Sou meus escritos e minhas leituras, sou o amor aos meus pais e a meu irmão, a minhas amizades e a mim mesmo.
Assim, sou muitas coisas e fui outras: ainda serei, espero.
O que sou hoje me faz querer transmitir conhecimento às pessoas, expressar minhas verdades (que são bem fluídas) e aprender com todo aquele que eu conversar. Quero ajudar os outros a encontrarem suas verdades e no caminho também procurar a minha.

Edição dessa semana:

#14 - A amizade como forma de tornar-se o que se é

Investimento: 

Pensar a amizade

O amigo (pensa em teu amigo/a) está para além daquele que é um “conhecido” (pensem no termo conhecido como aquelas pessoas que nos relacionamos por prazer ou utilidade). Por outro lado, sempre lançamos nosso amigo a uma intimidade familiar: chamamos a nossos amigos mais próximos de “irmãos” e lhes concedemos uma confiança igual ou muito similar àquela com nossos familiares.

Mas o amigo tampouco é um familiar, visto que a ele confiámos coisas que sequer consideramos falar a nossos familiares. Então, onde se posiciona o amigo? Se ele não é um conhecido desses que vamos juntos à uma festa e nem um familiar com quem compartilhamos a mesa, o que ele é?

“Do meu amigo não demando nada além de que ele siga sendo quem ele é”

O amigo (pensa em teu amigo/a) nos acompanha em territórios inusitados, com ele rompemos barreiras; com meu amigo eu posso ser quem sou, assim diz Nietzsche, e somos um para o outro trampolins que se impulsionam aceitando-se mutuamente. O amigo tampouco está para nós como um namorado ou uma namorada o está, pois as confidências que confiamos a nossas amizades jamais poderiam ser confiadas à pessoas com quem nos relacionamos de forma romântica.

Também nosso comportamento ao lado de nossas amizades é sempre limítrofe, absurdo, verdadeiro, sumamente verdadeiro. A amizade não requer constância afetiva, podemos as vezes passar meses sem ver-nos com nosso amigo e isto não afetará nosso vinculo: não existirão inseguranças, magoas ou ressentimentos, pois nossa amizade significa a dignificação da pessoalidade, a supremacia da individualidade, o desejo de que o outro siga seu caminho escolhido, mesmo que isto possa não incluir-me.

Do meu amigo não demando nada além de que ele siga sendo quem ele é, não quero nenhum benefício de sua amizade, não quero que ele me entregue nada, não quero que ele faça aquilo que eu quero que ele faça, ou que ele seja da forma que eu quero que ele seja.

A inimizade como construto da amizade

A amizade também deve possuir a inimizade, a discórdia e a luta. Também com meu amigo preciso ter atrito, não podemos concordar em tudo, não podemos ser o mesmo e um só como Aristóteles o disse: “Amizade é uma só alma em dois distintos corpos”.

Nietzsche, ao contrário do tio Ari, dirá: “não é o modo como um alma se aproxima de outra, mas em como se afasta dela que reconheço seu parentesco e relação com a outra”, assim, aceitar ao outro como ele é, é aceitar também que sentimentos como os de traição, distanciamento e infidelidade existirão.

Que nosso amigo (pensa em teu amigo/a) pode tomar um caminho diferente do nosso, que pode afastar-se sem nos dar sinal de vida, ser injusto ou infiel e que nós também podemos fazer isto com ele, mas se nos aceitarmos tal como somos e afirmemo-nos conjuntamente como aqueles que procuram tornar-se quem são, então estaremos sujeitos a isto e compreenderemos estas atitudes.

Esta é a radicalidade tão linda da filosofia do Nietzsche, que para tornar-se quem somos devemos ser totalmente reais a nossa humanidade e se a amizade é uma ponte para isto, ela precisa abarcar todo e cada qual dos sentimentos sem querer modificá-las no outro ou corrigi-los.

A amizade como libertação dos condicionamentos

Percebo que a amizade procura desamarrar o amarrado, romper correntes, incendiar os condicionamentos e das cinzas deles criar um novo sistema de valores, um mapa de afetos próprios ao da amizade.

Assim o percebo quando me lembro como eu e meus amigos caminhávamos pela rua ou íamos a uma festa e realizávamos coisas das mais absurdas como gritar, gargalhar, dançar ridiculamente ou até chorar, sem sequer ligar para quem estivesse fora daquele universo que criávamos.

Esta é a boniteza do universo compartilhado com nosso amigo: quando estamos com nosso amigo estamos neste universo fora do universo. Há uma liberdade que a amizade nos proporciona e esta é a liberdade de sermos quem queremos ser. Nietzsche fala que a liberdade é uma luta contra uma resistência, quanto mais possamos fazer força e superar esta resistência mais livre seremos, mas como conquistar isto? Como elevar-se para além das resistências superpostas?

Uma de suas respostas está na amizade que eleva, a amizade que aproxima ainda mais a nós mesmos, mesmo quando nos afastamos daquele que era nosso amigo, foi esta amizade que nos ajudou a construir, alterar ou seguir um destino que a nossa vida toma.

Como perceber uma amizade tóxica?

É aquela amizade na qual um não permite ao outro tornar-se quem ele é.

Vai pro sebo mais próximo da tua casa ou pega um pdf mesmo! Aqui é a seção:

Bota o cérebro pra trabalhar com a leitura hardcore da semana!

Vou soltar aqui o livro que me serviu de grande inspiração para a edição dessa semana. Em especial o aforismo 14 do livro primeiro chamado “Tudo aquilo a que se chama Amor”. Amo ler Nietsche e esse livro tem temas diversos, foi neste livro que por primeira vez Nietzsche menciona sua ideia do Eterno retorno, da morte de Deus e cita Zaratustra, que será o protagonista de uma posterior e muito conhecida dele, chamada “Assim falou Zaratustra”.

Em toda edição organizamos uma coletânea de três recomendações que envolvem: podcast, música e filme ou série, que procuram ser relacionados com o tema da edição da semana, mas que também podem ser aleatórios e serem super legais para refletir um pouquinho.

Vídeo ▶️

Esse vídeo do Borges falando sobre a diferença entre o amor da amizade e o amor romântico é belíssima e conversa com a proposta por Nietzsche.

Assistir "El amor y la amistad, segun Borges"

Amizade Estelar - Friedrich Nietzsche

"Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois navios que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter tido um só destino. Mas, então, a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é da lei acima de nós: justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – E assim crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra".

(Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 279)

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