6/3/2023

#4 - O tesão em filosofar

Quando falo em tesão no filosofar em contraposição ao amar a sabedoria, falo em valorizar nosso impulso carnal de viver; falo em movimento e não em contemplação estática, em seguir a vontade de conhecer que nasce sem lógica, sem argumentação; o início do filosofar como um desejo por uma pessoa, por uma comida, por tocar uma árvore; o início do filosofar pela via corpórea e instintual, pois o que nos impele a conhecer está no corpo também e não somente na razão.
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Te desafiamos a refletir uma vez por semana sobre temas cotidianos tirados de sua normalidade. Se você veio procurando receitas de vida, saia agora! Acreditamos no desenvolvimento de ideias próprias e do pensamento livre e crítico. Não trabalhamos com verdades absolutas nem com fórmulas prontas. Aqui somente desenhamos ideias. Falamos sobre filosofia desde o lugar em que ela nasceu: nas conversas informais na rua, nos problemas do dia a dia. Viver é fazer filosofia. Seja bem-vindo.

Eu sou o Francisco e também o Chico e o Chiquinho. Eu olho pro mundo e questiono ele, aberto a receber todas as possíveis respostas que ele pode me dar.
Eu sou a filosofia que estudo e vivencio, sou as pessoas que me atravessam e sou ainda a criança que eu espero que nunca saia de mim. Sou meus escritos e minhas leituras, sou o amor aos meus pais e a meu irmão, a minhas amizades e a mim mesmo.
Assim, sou muitas coisas e fui outras: ainda serei, espero.
O que sou hoje me faz querer transmitir conhecimento às pessoas, expressar minhas verdades (que são bem fluídas) e aprender com todo aquele que eu conversar. Quero ajudar os outros a encontrarem suas verdades e no caminho também procurar a minha.

Edição dessa semana:

#4 - O tesão em filosofar

Investimento: 

10min

“Eu sou todo corpo e nada além disso; e a alma é somente uma palavra para alguma coisa do corpo.”

(Assim falou Zaratustra, F. Nietzsche)

Thaumazein

Me sentei intranquilo em uma cadeira suja da agência do banco a esperar que me atendessem. Minha impaciência corroía meus ossos e meus pensamentos - pés inquietos, roendo minhas unhas, coração palpitando; da onde é que vem toda essa ansiedade, ein?

Logo, algo ocorre: começo a perceber os telefones tocando, uma lâmpada no teto que já finda sua vida, o papel triturado numa lixeira e um cheiro antigo que me lembra a Buenos Aires. Os personagens com os quais compartilhava aquela cena teatral também começavam lentamente a se manifestar: um velho que parecia ter sarna a meu lado me perguntava se estava demorando muito, uma mulher impaciente que assoava o nariz com toda a força observava uma criança que não parava de correr pelos corredores cinzentos do banco.

Então me invadiu uma questão: tudo isso acontece aqui neste espaço, todas essas pessoas tem vidas e problemas e interesses e amores e desejos, e tudo continua e tudo vive nesse espaço e tempo e… mas como pode ser que não nos perguntemos o que caralhos está acontecendo aqui?

Platão estende sua mão grega e me entrega um conceito para me ajudar a explicar esta questão que me invadiu, (eu desconfio): o nome do conceito é Thaumazein.

Este é um termo grego que pode ser compreendido como encantamento, espanto, vislumbre contemplativo, ou soco na cara da rotina que nos faz reconhecer nossa ignorância perante o todo (saber que nada sabemos,) e que nos incita ao conhecimento. Isso me lembra também ao sentimento do absurdo relatado por Camus, o sentimento de um divórcio entre o ser humano e o mundo, um estranhamento perante o externo. O role é que é a partir do Thaumazin que para Platão e também pro tio Ari que se começa a filosofar; é este espanto ocasionado pela contemplação do mundo externo que nos impele a tentar entender isso que nos é estranho.

Então será que esse meu momento no banco foi uma experiência do Thaumazein? E será que o filosofar começa mesmo com o Thaumazein?

O que me incomoda no conceito do Thaumazein é a afecção pela contemplação, que em alguma de suas conotações, leva a pensar em ausência de movimento. Contemplação refere a abstração intelectual, que refere ao pensamento, ao intelecto e ao espírito - é uma espécie de alimento pra mente. A vida contemplativa foi defendida com muita força pelos cabeças do Platão e Aristóteles, os quais a exaltavam acima da vida prática, considerando que somente a contemplação era digna do filósofo. E todo esse role tem como consequência uma posição de valorização da alma, do espírito, da inteligência e do pensamento e por outro lado de desprezo das volições, dos desejos, impulsos, do trabalho manual e de tudo o que refere a uma atividade corpórea.

O negócio é que o pensamento ocidental se fundamenta sobre uma dicotomia hierárquica (termos que se referem a uma divisão binária entre conceitos onde tem um que é bom e outro ruim), alguns exemplos dessa dicotomia: corpo x alma, realidade x aparência, opinião x verdade e muitas outras que vemos em nosso cotidiano. Esses conceitos possuem juízos de valor: de um lado o bom do outro o ruim e é dessa forma que se dá a origem dos preconceitos e de tudo que a sociedade tem de menos humano.

Portanto, o que estamos aqui problematizando é essa origem do filosofar, o Thaumazein, e como o ato de filosofar se estrutura sob esse conceito. Então vamos desenvolver uma crítica ao Thaumazein não a partir dele, mas a partir de como a filosofia é percebida e realizada desde a sua constituição mais elementar.

Amor pela sabedoria

A palavra filosofia (do grego philia + sophia) significa amor pela sabedoria. Aqui há dois conceitos que vamos desconstruir, são eles amor e sabedoria. Não pensam na palavra desconstruir como um ato de destruir, mas de desmontar e analisar tentando ver outras possibilidades.

No diálogo de Platão “O Banquete, sobre o amor (Eros)”, Sócrates apresenta um discurso de Diotima, sacerdotisa de Mantineia, sobre o Amor como desejo - de beleza, de imortalidade, de sabedoria -, como processo de elevação da alma em busca da perfeição. E é neste diálogo que se constrói a definição platônica do filósofo, baseada totalmente na figura de Sócrates e Eros (amor).

Sócrates relata uma história mitológica sobre a origem de Eros muito interessante que lhe foi contada por Diotima:

”Quando Afrodite nasceu, os deuses fizeram uma grande festa e entre os convivas estava Poros, o deus da Riqueza. Como sempre quando havia alegria, a deusa da penúria (Penia) chegou para mendigar. Mas então, Poros, embriagado de néctar, adormeceu no jardim de Zeus. Penúria chegou e deitou-se ao seu lado, concebendo Amor.

Assim sucedeu que desde o início Amor serviu Afrodite, e foi um amante do belo, a bela Afrodite.”

É de se notar como nessa história há algumas coisas inquestionadas e assumidas sem problemas: primeiro é o fato de que o nascimento de Amor parece se dar em circunstâncias de um estupro ou algo do tipo, pois ele não é desejado por ambas as partes. E a outra é a de que Eros (amor) herdará indiscutivelmente o lado de sua mãe, Penia: ele é sempre pobre e está longe da suavidade e beleza que muitos lhe supõem; ao contrário, é duro e seco, descalço e sem teto. E por outro lado, ele será como seu pai, Poros: herdou os esquemas de conquista de tudo o que é belo e bom; é bravo, impetuoso, muito sensível, caçador emérito, sempre tramando algum estratagema; desejoso e capaz de sabedoria, a vida toda perseguindo a verdade; um mestre do malabarismo, do feitiço e do discurso envolvente.

De modo que o Amor nasce de uma violência entre a penúria e a riqueza; ele nunca é pobre ou rico e, além disso, está sempre a meio caminho da sabedoria e da ignorância. Esta definição do amor é também compatível com a do filósofo, que, consciente de sua ignorância e à procura da sabedoria, está também à metade do caminho, é portanto um intercessor.

Amor tesão pela sabedoria

O amor defendido por Platão é colocado como o amor ao belo e a beleza a ser alcançada por quem ama é apresentada como uma beleza ideal, chamada de beleza “essencial”, ou seja, não-mundana, uma beleza impossível de ser alcançada por nossa vida terrena. Assim como o amor, o filósofo está à metade do caminho entre a sabedoria e a ignorância, e é aquele que se sabe ignorante, assim como Sócrates, mas que entende que aquilo que ele procura conhecer não está ao seu alcance, não está no mundo, sua procura é transcendental, pois como o amante ele ama e procura o belo, a sabedoria, assim, se houver uma forma de procurá-la não será pela via do corpo, mas a de um intelecto somente.

Portanto o corpo será para Platão “esse intruso que irrompe em meio de nossas investigações, nos entorpece, nos perturba e nos impede o discernimento da verdade. [...] se desejamos saber realmente alguma coisa, é preciso que abandonemos o corpo e que apenas a alma analise os objetos que deseja conhecer” (Platão, 1966, 66a-67d).

O thaumazein, sobre o qual a filosofia se funda, está totalmente dissociado desta prática corpórea, ele valoriza a inteligência e a ação do pensamento em detrimento aos impulsos, desejos e sentidos sob os quais o corpo é regido. Assim, o amor à sabedoria, que vem a ser o ato de filosofar, está todo permeado por este ato contemplativo, que preza pelas ferramentas da alma e não pelas do corpo.

Aqui há um claro desprezo aos sentidos, aos sentimentos e aos desejos; há um desprezo a tudo o que nossa corporeidade nos mostra e assim, conforma-se uma cultura baseada na racionalidade que, como Nietzsche o bem sintetiza em um capítulo do “Assim Falou Zaratustra”, é uma sociedade de “desprezadores do corpo”.

Quando falo em tesão no filosofar em contraposição ao amar a sabedoria, falo em valorizar nosso impulso carnal de viver; falo em movimento e não em contemplação estática, em seguir a vontade de conhecer que nasce sem lógica, sem argumentação; o início do filosofar como um desejo por uma pessoa, por uma comida, por tocar uma árvore; o início do filosofar pela via corpórea e instintual, pois o que nos impele a conhecer está no corpo também e não somente na razão.

Desfilosofar é filosofar desde outro olhar

O filosofar é contemplativo mas também envolvente; as ferramentas que utilizamos para nos relacionar com o conhecimento devem ser repensadas. A estrutura binária de nosso pensamento tão ocidentalizado, nascida desde a composição idealista platônica da natureza humana e logo seguida por uma cultura fundada em preceitos judaico-cristães, bane a elaboração de uma natureza humana dinâmica, onde não há divisão entre corpo x alma, mas sim um todo só.

Para filosofar deve haver corpo envolvido, deve haver uma força que vem lá de dentro, uma curiosidade que nos incendeia e uma sensualidade no ato. Filosofar é experienciar o amor, mas também é experienciar-se da cabeça aos pés, é arrepiar-se e consumir-se.

Os olhos não servem somente para ver, mas também para chorar. A boca não serve somente para falar, mas também para beijar.

*Quero dedicar essa edição à minha mãe Luciana, que desde que eu era uma criança me fez estar em contato com a corporeidade na arte pela seu amor e dedicação à cerâmica. Seu afã pelas culturas indígenas sempre fez com que ela valorize o corpo e suas múltiplas expressões e linguagens, dando um significado profundo e múltiplo às atividades corporais.

Vai pro sebo mais próximo da tua casa ou pega um pdf mesmo! Aqui é a seção:

Bota o cérebro pra trabalhar com a leitura hardcore da semana!

Em toda edição organizamos uma coletânea de três recomendações que envolvem: podcast, música e filme ou série, que procuram ser relacionados com o tema da edição da semana, mas que também podem ser aleatórios e serem super legais para refletir um pouquinho.

Música 🎵

Essa semana trouxemos uma música em espanhol, de uma banda argentina.


Himno de Mi Corazón - Los Abuelos de la Nada

Vídeo 🎥

Gente esse vídeo é foda. Confiram o canal e o resto do conteúdo, a didática é sensacional!


A realidade é subjetiva - Tempero Drag

Filme ou série 🎥

Essa semana trazemos um clássico, que é pra te fazer refletir, chorar, rir e pensar um pouquinho mais.
Acho que em grande medida, o professor apresentado no “Sociedade…” é um modelo a ser seguido, a educação ultrapassando a sala de aula estrutural e clássica, havendo conexão entre o educador e o estudante, havendo relação contínua entre o conteúdo e a vida dos estudantes. Isso sim é desconstruir!


Sociedade dos Poetas Mortos

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.

Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade.”

Eduardo Galeano em o Livro dos Abraços

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O que me agrada é pensar que existe para cada pessoa que está no mundo uma filosofia; que a partir de sua individualidade possa refletir e escolher, assim tentando aproximar-se à sua própria verdade.
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O jogador desce as escadas que dão ao estádio. Lhe invade uma ânsia de vomito e sente o seu estômago soltar-se, como que desprender-se do seu corpo. Tal qual uma nota musical que aparece em meio ao silêncio o jogador se faz notar na quadra: ele é este ator que apresenta-se ao cenário, os holofotes o iluminam, os aplausos o elevam, ele está agora à vista, está exposto.
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Haverá alguma forma de filosofar sobre o basquete? Há alguma forma de respondermos às problemáticas humanas a partir de uma reflexão do jogo de basquete? Quando jogam, as pessoas dizem esquecer-se de todos os problemas, de por alguns momentos terem a impressão de que estão em alguma outra dimensão, em outro plano… mas… não será o próprio basquete uma forma de lidar com a vida ao invés de escapar-se dela? Não será o basquete já nossa vida e nele não estaremos também procurando resolver e compreender os problemas que nos esperam do outro lado das linhas que delimitam o templo que é a quadra de basquete? Assim como o jogo de basquete que se joga em seus quatro quartos, eu pretendo pensar o basquete em 4 textos e mais um, o Overtime.
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