13/3/2023

#5 - A arte de mudar

Alguma vez te invadiu uma sensação de não querer estar quieto, de não querer te estabelecer a nenhum lugar, mas também contrariamente te sentir perdido, sentir que não tens uma identidade, que não se tem um chão que possa ser chamado de meu? Se a resposta for sim, então estamos nessa juntos 🙂
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Te desafiamos a refletir uma vez por semana sobre temas cotidianos tirados de sua normalidade. Se você veio procurando receitas de vida, saia agora! Acreditamos no desenvolvimento de ideias próprias e do pensamento livre e crítico. Não trabalhamos com verdades absolutas nem com fórmulas prontas. Aqui somente desenhamos ideias. Falamos sobre filosofia desde o lugar em que ela nasceu: nas conversas informais na rua, nos problemas do dia a dia. Viver é fazer filosofia. Seja bem-vindo.

Eu sou o Francisco e também o Chico e o Chiquinho. Eu olho pro mundo e questiono ele, aberto a receber todas as possíveis respostas que ele pode me dar.
Eu sou a filosofia que estudo e vivencio, sou as pessoas que me atravessam e sou ainda a criança que eu espero que nunca saia de mim. Sou meus escritos e minhas leituras, sou o amor aos meus pais e a meu irmão, a minhas amizades e a mim mesmo.
Assim, sou muitas coisas e fui outras: ainda serei, espero.
O que sou hoje me faz querer transmitir conhecimento às pessoas, expressar minhas verdades (que são bem fluídas) e aprender com todo aquele que eu conversar. Quero ajudar os outros a encontrarem suas verdades e no caminho também procurar a minha.

Edição dessa semana:

#5 - A arte de mudar

Investimento: 

10min

Adoro o nome de um tango argentino do Julio Sosa, o nome é assim: “Que me van a hablar de amor!” (Traduzido fica algo como: Que que vocês vão falar de amor pra mim?) Eu interpreto esse tango no sentido de que a experiência do amor que cada um de nós têm é única; ninguém pode falar de amor para ninguém pois cada um vive o amor como o vive e como nos faltam tantas palavras para descrever o que sentimos, então, que ninguém venha me falar o que é amor!

E eu sou um amante, não só de amores, mas também da palavra que se faz presente igual um leviatã em minha vida como também na do meu irmão maior, o Juani, que nesse momento deve estar em algum voo cruzando algum continente. Por isso, e por muitos outros motivos, de nada me surpreendeu quando ao ter solicitado que os leitores sugerissem um tema para esta newsletter, que meu irmão surgisse com o tema de nossa compartilhada e tão conhecida forma de vida e que anunciasse esta palavra inconfundível e tantas vezes revisitada: a mudança, ou como ele próprio escreveu: as mudanças da vida.

Então replico mais uma vez ao Sosa e agora declaro eu, Francisco, com convicção: Que que vocês vão falar de mudanças para mim?! Pois eu e o Juani fomos forjados sob a forma do vento; e que forma tem o vento? A da mudança. Na carteira levamos dois documentos: o argentino de um lado e o brasileiro do outro; e assim o espírito se divide entre duas pátrias, entre culturas e comidas, entre línguas e costumes; o negócio é que nós nascemos e desde sempre habitamos o “entre”, pois jamais nos colocamos de nenhum lado totalmente, somos e continuamos a ser o vir-a-ser e nós mantemos fieis a este movimento contínuo sem jamais haver declarado tal injúria contra nosso espirito: de que sou isto ou aquilo.


Mas como vive o ser humano entre uma coisa e outra, sem nunca poder dizer-se eu sou isto ou aquilo? E por que precisamos dizer eu sou isto ou aquilo?


Acho que essa é a dificuldade de quem se coloca no mundo como parte dele e sentir-se parte dele é algo que construímos ao longo da vida, e isto nasce da condição de procurar algo que nós é vital: e isto é o pertencer. Pertencer é identificar-se, é habitar e ser habitado, estar no mundo não nos basta, precisamos pertencer a ele, sentir que pisamos em algo conhecido, familiar, e assim poder amar, assim poder ser amado. Se há um grito verdadeiro que todos compartilhamos é este: Eu quero pertencer!

Mas se desde que somos crianças nos mudamos de casa, de bairro, de cidade e de país, esse role do pertencimento fica meio difuso. Todo esse movimento é como a folha que se move ao compasso do vento, já dizia o Flaco Spinetta: “todas las hojas son del viento” estamos todos sujeitos a nos mover onde o vento nos leva e onde nós escolhemos levar-nos, só que o assunto aqui não é esse. A parada é que toda essa mudança provoca um negócio profundo na gente, algo que parece tornar-se constituinte do que somos.

Alguma vez te invadiu uma sensação de não querer estar quieto, de não querer te estabelecer a nenhum lugar, mas também contrariamente te sentir perdido, sentir que não tens uma identidade, que não se tem um chão que possa ser chamado de meu? Se a resposta for sim, então estamos nessa juntos 🙂

E é assim, por estes contrários, que nasce uma cabeça que pergunta, que se enche de dúvidas sobre quem somos, o que procuramos, qual é o caminho que a vida pode tomar e que, também, lentamente nos leva a perceber que estamos indo na contramão de uma sociedade que não vê com bons olhos toda essa mudança.

Panta Rei

Quando o Heráclito disse que “ninguém se banho no mesmo rio duas vezes” alguém depois acrescentou para dar uma ajudada “pois nem nós somos os mesmo e nem o rio é” e então se formulou uma das frases mais belas da filosofia antiga. Mas o que isso quer dizer exatamente? Heráclito queria dizer que o Ser está em contínua mudança, que ele é feito da matéria da mudança e que isto é inevitável. O Ser representa o contrário à nada, ou ao que podemos chamar de não-ser, e para o Heráclito tudo o que é está mudando, não há permanência. Nós estamos em constante mudança, tu que está lendo esse texto nesse exato momento já não é o mesmo que começou a ler alguns minutos atrás. E assim se formula a expressão grega (boa pra se tatuar) Panta Rei que significa “tudo passa”.


Mas será que nós realmente mudamos? Será que essas transformações são profundas o suficiente para nós mudar completamente e sermos totalmente diferentes do que éramos? O que fica? Há essência? Para Heráclito não, as coisas simplesmente mudam e não há nada que permaneça, nem mesmo aquilo que acreditamos ser. Por isso me revolta quando ouço frases como “Eu sou assim…” e tudo o que promete uma estaticidade, um “O ser é e o não ser não é”.

"Mas não esqueças que aqueles que cruzam o mar mudam de céu, não de alma.”

Li essa frase em uma peça do Shakespeare a muito tempo atrás; ela me remete a Freud, a traumas, a temas não resolvidos e desejos não realizados, a reprimir e escolher mudar não pelo seu potencial transformador, mas para tentar escapar a dores que começam a poluir os espaços que habitamos. Mas essa frase também é indicativo de que há algo de imutável em nós, que carregamos ao longo da vida e que não faz parte deste crepúsculo constante que Heráclito declara.


Obviamente Heráclito não leu Freud e nem Shakespeare o fez, mas a consciência do dramaturgo lhe fazia duvidar de um devir que desse conta de todos os aspectos do Ser. Parece que em nós habita algo, que como dizia Saramago, não tem nome mas que nos torna o que somos; e o que é isto? A alma? O espírito? A consciência? Existem tais coisas?

A arte de mudar

Independente do fato que mudemos completamente ou que carreguemos algo interno que permanece na gente, a mudança existe e requer esforço. Vejo constantemente pessoas ao meu redor, pessoas que se recusam a mudar, que vivem uma vida-esteira, estudando no mesmo colégio a vida toda, indo à faculdade com as mesmas pessoas, morando no mesmo bairro, indo ao mesmo mercado, indo aos mesmos restaurantes e acariciando ideias limitadas, crenças fechadas e estruturantes, passando uma vida sob uma única ótica, com verdades eternas… porra ainda se fala em verdade?

Não digo que viver a vida inteira em um mesmo lugar seja limitante (digo sim) mas que isto constitui fortemente nosso empreendimento de vida, as nossas ideias, nossa atuação no mundo, sim, isto o digo.

Mudar trata de esquecimento, renovação, plasticidade, de readaptar-se, de refazer-se o tempo inteiro; E mudar as vezes não tem uma razão: mudar por mudar dizia um cantor argentino, sem muito preocupar-se com as consequências destas palavras. Mudar é uma arte por isto e por muitas outras coisas, é também um modo de vida e um vício, um colocar-se no mundo e deixar-se ser, à procura de um pertencimento que nunca se estabelece, de um pertencimento universal.


*Quero dedicar esta edição ao meu irmão maior Juani. Fomos companheiros de estrada durante as últimas duas décadas, que para mim constituem quase toda minha vida. Se há um graduado na arte de mudar esse é o Juani, que nestes tempos se encontra entre aeroportos e cidades provisórias, agora sem a minha companhia ou de minha família, mas estando acompanhado de si mesmo. Sei que tu está preparado para qualquer desafio que a vida te deparar, a mudança se desliza por ti e tu aceita ela, como se aceitam novos amores. Te amo Juani.

Vai pro sebo mais próximo da tua casa ou pega um pdf mesmo! Aqui é a seção:

Bota o cérebro pra trabalhar com a leitura hardcore da semana!

Em toda edição organizamos uma coletânea de três recomendações que envolvem: podcast, música e filme ou série, que procuram ser relacionados com o tema da edição da semana, mas que também podem ser aleatórios e serem super legais para refletir um pouquinho.

Música 🎵

Essa semana vamos com duas músicas que mexem demais com meu coraçãozinho. A primeira é o tango que menciono no início da edição do Julio Sosa.

Qué Me Van a Hablar de Amor - Julio Sosa

A segunda escolha é de um dos meus artistas favoritos do rock nacional argentino, diretamente de Rosário, Fito Paez e sua belíssima:

Tumbas De La Gloria - Fito Paez

Filme ou série 🎥

Vou fazer uma declaração íntima… digamos que todo esse rolê de dificuldade de encontrar um lugar no mundo chegou ao divã com minha terapeuta, e minha tão querida terapeuta, como sempre o fizemos, me entregou este filme, que foi transformador in so many ways. O negócio é que a personagem do filme é um camaleão, mas é mesmo mano. Ele se transforma totalmente, física e espiritualmente para se adaptar a todo ambiente em que está, e o faz sem perceber.

Zelig, Woody Allen

Nesta edição iniciamos uma nova secção chamada de questione! Vamos lançar uma questão para vocês para que seja respondida neste e-mail mesmo!

O teorema ou paradoxo do barco de Teseu declara o seguinte: Teseu parte de navio do ponto A para o ponto B. Mas, ao longo de uma viagem de 50 anos, vai substituindo cada peça do barco conforme se desgasta, até que todas tenham sido trocadas.

A questão é a seguinte:

O barco continua sendo o mesmo? Ou é outro barco?

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O que me agrada é pensar que existe para cada pessoa que está no mundo uma filosofia; que a partir de sua individualidade possa refletir e escolher, assim tentando aproximar-se à sua própria verdade.
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O jogador desce as escadas que dão ao estádio. Lhe invade uma ânsia de vomito e sente o seu estômago soltar-se, como que desprender-se do seu corpo. Tal qual uma nota musical que aparece em meio ao silêncio o jogador se faz notar na quadra: ele é este ator que apresenta-se ao cenário, os holofotes o iluminam, os aplausos o elevam, ele está agora à vista, está exposto.
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Haverá alguma forma de filosofar sobre o basquete? Há alguma forma de respondermos às problemáticas humanas a partir de uma reflexão do jogo de basquete? Quando jogam, as pessoas dizem esquecer-se de todos os problemas, de por alguns momentos terem a impressão de que estão em alguma outra dimensão, em outro plano… mas… não será o próprio basquete uma forma de lidar com a vida ao invés de escapar-se dela? Não será o basquete já nossa vida e nele não estaremos também procurando resolver e compreender os problemas que nos esperam do outro lado das linhas que delimitam o templo que é a quadra de basquete? Assim como o jogo de basquete que se joga em seus quatro quartos, eu pretendo pensar o basquete em 4 textos e mais um, o Overtime.
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