Te desafiamos a refletir uma vez por semana sobre temas cotidianos tirados de sua normalidade. Se você veio procurando receitas de vida, saia agora! Acreditamos no desenvolvimento de ideias próprias e do pensamento livre e crítico. Não trabalhamos com verdades absolutas nem com fórmulas prontas. Aqui somente desenhamos ideias. Falamos sobre filosofia desde o lugar em que ela nasceu: nas conversas informais na rua, nos problemas do dia a dia. Viver é fazer filosofia. Seja bem-vindo.

Eu sou o Francisco e também o Chico e o Chiquinho. Eu olho pro mundo e questiono ele, aberto a receber todas as possíveis respostas que ele pode me dar.
Eu sou a filosofia que estudo e vivencio, sou as pessoas que me atravessam e sou ainda a criança que eu espero que nunca saia de mim. Sou meus escritos e minhas leituras, sou o amor aos meus pais e a meu irmão, a minhas amizades e a mim mesmo.
Assim, sou muitas coisas e fui outras: ainda serei, espero.
O que sou hoje me faz querer transmitir conhecimento às pessoas, expressar minhas verdades (que são bem fluídas) e aprender com todo aquele que eu conversar. Quero ajudar os outros a encontrarem suas verdades e no caminho também procurar a minha.
Edição dessa semana:
#7 - O Futebol e a sua magia: a glória eterna e os heróis-míticos dos gramados
Investimento:
45min + 2 de acréscimo

"De jugar, de jugar en los portones. de hacer enojar a los vecinos, de escaparnos del colegio para ir a jugar un rato más; somos el pueblo, somos el fútbol!”
Desconhecido
Quem ousa dizer que a magia não existe?
Quando a Argentina ganhou a final da copa do mundo de 2022 no Qatar contra a “imbatível” seleção francesa, em uma final digna de ataques de ansiedade e palpitações inacabáveis, eu estava em uma casa às aforas da cidade de Paraná, na província de Entre Rios, Argentina, com meus pais e meu irmão.
Na rodada de pênaltis, quando Montiel se preparava para chutar o pênalti que nos brindaria o título, estávamos todos nos agarrando os cabelos, caminhando sem parar pela casa; meu pai abriu uma cachaça, eu e meu irmão chorávamos e minha mãe gritava. Então Montiel se dirige à bola como Teseu quando caminhava pelo labirinto atrás do Minotauro, então a bola toca seu pé e seu pé toca na bola, então o goleiro se joga sem hesitar ao lado contrário da bola e neste momento (que momento inesquecível caralho!) em que a rede balança como a renda de noiva de uma menina irresistível, foi então que nossa seleção se fez campeã do mundo; um país em uníssono gritou “Gooool” e a todos nos invadiu o choro, os abraços; pulamos na piscina e a música tão famosa do mundial “Muchachos, ahora nos volvimos a ilusionar…” ressoava aos prantos por toda a Argentina.

Saímos com o carro pelas ruas, eu e meu irmão sentamos na janela do carro, com as bandeiras ao vento; uma multidão de carros pululava pelas ruas, eles também, desde dentro de seus carros buzinando, cantando e chorando; gritávamos sem saber o que nem para quem; todos estávamos estremecidos por aquela euforia, por aquela alegria que não se explicava.
A magia não se explica
Ao chegar no centro da cidade havia uma massa albiceleste que replicava a cor do céu. Naquele dia o céu trocou de lugar e se viu na terra; parecia que o planeta era nosso: a conquista do mundial parecia uma conquista do universo. E assim, a seleção se transforma no país, a celebração não era somente pelo futebol mas pela Argentina: pela dor, pelo sofrimento, pelo povo que passa fome e necessidade. Uma alegria que parece fazer-nos esquecer de todo o mal e dor que fustiga o país já a anos, uma felicidade reparadora, um êxtase liberador, simplificando: foi um orgasmo nacional.

Por algum motivo que ainda tentamos entender as pessoas subiam-se aos lugares os mais inusitados: semáforos, paradas de ónibus, prédios do governo e houveram em Buenos Aires aqueles que até o obelisco invadiram. O que se pretendia com isto?
Eu acho que o que estas pessoas queriam era alcançar o céu: é assim como se sente aquele que é tocado de uma forma tão profunda por este esporte; o futebol envolve identidade, a bandeira que une aos torcedores os envolve por inteiros, “o futebol é o que somos” ouve-se desde as arquibancadas. Temos que pensar o que será que está por trás disso tudo…
“La gloria nadie te la quita” - Papá (Ninguém tira a glória de ti - meu pai)
Aprendi em casa com meu pai que há algo que não morre e que dura para o resto de nossas vidas e para além dela e isto é a glória. Nada nem ninguém pode apagar os triunfos de nossos feitos, eles permanecerão na história pelo resto da eternidade. Quando meu pai diz isto quase que com lágrimas nos olhos há um pressuposto escondido: que a gloria é o máximo ao que o ser humano pode chegar em sua vida, que em momentos difíceis ela será o nosso remédio para nos manter felizes com nós mesmos e satisfeitos com a vida pois “nada há de maior que a glória”.
É isto verídico? Eu nunca concordei com ele a respeito, mas devo sim a esta implicação com meu pai grande parte de minhas reflexões sobre estes temas (no fundo fazer filosofia é implicar com nossos pais); é que eu sempre achei que este era um discurso saudosista e romântico: é como se ganhar uma copa do mundo fosse suficiente para nos deixar morrer em paz, pois se nada mais dá certo com nossas vidas, a glória pelo menos estará ali, intacta, a medalha pendurada e o troféu na estante, tudo isto não terá mais possibilidade de mácula: a glória é sobre o que foi feito no passado e o passado não se mancha, a não ser que vivamos uma distopia a la 1984.
Só que esse papo da glória é uma narrativa construída sob um espectro que ronda o esporte que é o de uma espécie de transcendência; imaginamos a glória dos atletas e a pessoal como uma passagem a algum olimpo nos céus ou ao que é chamado de hall da fama na terra; os jogadores que a alcançam são divinizados, se tornam esses semi-deuses na terra ou no que vamos chamar de heróis-míticos, os quais não somente se salvaram mas também que salvam os povos da infelicidade e da angústia.
Os curiosos perguntam: se salvaram do que? Eu replico: do que vocês pensam? Da frustração? Da infelicidade? Do fracasso?
A construção social dos heróis-míticos
Mara Favoretto, escritora argentina, analisa o mito que foi construído a partir da imagem do Luis Alberto Spinetta, um dos maiores ícones do rock nacional argentino, em seu livro “Spinetta Mito y Mitologia” e ela fala o seguinte: “A sociedade precisa de heróis por que precisa encontrar alguma forma de unir a seus membros, de conciliar a união da comunidade para vislumbrar um caminho em comum rumo a um destino compartilhado como nação” .
Esse papo de herói não é de hoje, isso remonta à Grécia antiga e a sua mitologia que está povoada de heróis como Teseu, Aquiles e Hércules, estes são heróis clássicos que livraram as suas sociedades de um mal iminente. Os heróis de hoje em dia, menciona Mara, não são os mesmos que os de outras épocas; cada período histórico engendra a seus heróis e o herói contemporâneo é muito mais humano que os antigos heróis: é mortal, erra e tem defeitos (não sei se concordo com esta parte), também há um elemento que se adiciona e isto é a perseverança.

Admiramos a perseverança de uma forma idolátrica; as histórias de superação são um grande tema em nossa sociedade: nos emocionamos, enaltecemos e respeitamos aqueles que foram capazes de superar um longo período de sofrimento e de adversidades. Não é atoa que a maior parte das pessoas que atravessaram um evento difícil e conquistaram algo (como escalar o Everest, cruzar o mundo de navio ou coisas assim) virem palestrantes por todo o mundo e enchem plateias.
O fato é: nossa sociedade é fugaz, tem tanta coisa rolando por ai, tantos estímulos, interesses, parece que tudo se desliza pelos dedos, o tédio nos domina e mudamos o tempo todo, nos exasperamos ao mais mínimo desconforto, é realmente dificil perseverar em um único objetivo com tantas opções; naturalmente, quando aparece um ser que se dedica e que atravessa obstáculos que requerem um esforço descomedido nossa reação é de adorar a esta pessoa, pois ela é distinta, e quando ela obtém um resultado deste esforço, então lhe damos a capa do herói.
A perseverança está também ligada à glória: perseverar é o caminho a um sucesso ou à tentativa dele, a glória é a materialização desse sucesso. Perseverar é o processo, o resultado é certeza da glória. Esta jornada do herói que persevera e chega à glória é a jornada do atleta de nosso tempo. Os heróis de nossa época se encontram entre os gramados e que outro exemplo melhor de perseverança para pensarmos do que o “the little boy from Rosario, Argentina”: Lionel Messi.

Messi, D10S argentino
Esses dias o Messi estava em Buenos Aires e foi comer em um restaurante. Ao tentar sair, havia uma multidão de pessoas esperando por ele; cantavam, gritavam, tiravam fotos e esperavam ao ídolo da seleção argentina sair para poder chegar mais próximo a ele e para quem sabe tocá-lo.
Mas o que é essa tara de encostar em outro ser humano? O que terá Messi que faz com que as pessoas se espremam sem quase respirar para aproximar-se a ele? Que percam o tempo precioso da vida delas para ver outra pessoa passar a alguns metros delas e que esta pessoa sequer perceba a presença dela? O que faz com que o ser humano se dilua totalmente, que se coloque na posição de objeto observador, invisível, em uma massa de outros indivíduos?
Pensemos na palavra “adoração” com suas duas acepções: 1. render culto à divindade e 2. amar extremosamente. O que sentimos por Messi e por estes heróis que adoramos é amor, os amamos por uma identificação que eles nos fazem termos com aquilo que há de mais interno em nós mesmos, por que parecem unificar algo em nosso ser.
Quando falo que o Messi nos faz sentir uma unificação em nosso ser falo na plasticidade do herói que realiza feitos sobre-humanos mas que consegue mesmo assim alcançar o povo e passar sua lição de vida por meio do seu exemplo, ele não se coloca em um plano divino, inalcançável, mas sim como “aquele que conseguiu vencer limitações históricas pessoais e locais alcançando formas normalmente válidas, humanas.” (Campbell, J.)
O interessante é que sua heroicidade construída socialmente brinda informações importantes sobre qual é o tipo de herói que nossa sociedade demanda.
Mas os heróis nos salvam?
O herói é aquele que possui uma característica diferente do resto das pessoas: a sua habilidade única lhe permite ser transformador em sua sociedade e proporcionar alegria às pessoas, segurança, a sensação de unidade que Mara menciona e algo muito interessante, que é que o herói é aquele que nos salva de uma condição angustiante.
Mas como um jogador de futebol pode salvar às pessoas? E do que?
A ideia de salvação está envolvida com a nossa condição humana mortal; para mim, nossa vida já parece ser um motivo suficiente para precisarmos ser salvos. Salvar-se também é escapar: imaginem uma existência na qual não pudéssemos escapar deste movimento rumo a um precipício, que não houvessem coisas como a arte, o amor e a felicidade: estas são as grandes salvações da condição atroz na qual nos colocaram.
A parada da salvação vista como escape pode ser considerada uma alienação, um alheamento da realidade cruel que nos é deparada pela frieza dos dias de trabalho, responsabilidades e compromissos que não nos evocam esta sensação de liberdade e êxtase, e como não querer escapar a isto?
Eu sei que esse papo de ser salvo parece papo de literatura, um herói redentor que nos salve dos males da vida é um ótimo roteiro pra um filme clichê da Marvel ou coisas assim. O teto é que esse negócio pegou, os clichês pegam, e as pessoas de fato atribuem aos heróis esta possibilidade de salvação por um herói, lhes dão um valor tão grande que sua pessoalidade se dilui. Eu já ouvi alguém dizer: “O Messi vai salvar nosso país” em alguma conversa descompromissada com amigos.
O pai do Borges, meu escritor favorito, certa vez lhe disse o seguinte: “Ninguém pode salvar a ninguém, somente tu pode te salvar” e isto é: não espere que alguém te jogue uma corda para te salvar, tu sozinho procura as ferramentas, procura amar-te até te libertar, a possibilidade de redenção está em teus feitos e não nos do herói redentor.
A tentativa é de cada um ser o próprio herói de sua vida, esse é o desafio.

Vai pro sebo mais próximo da tua casa ou pega um pdf mesmo! Aqui é a seção:
Bota o cérebro pra trabalhar com a leitura hardcore da semana!

Eduardo Galeano
A minha primeira recomendação então é o livro do Eduardo Galeano (novamente Galeano por aqui). O livro, como Galeano pretendia é uma “homenagem ao futebol, celebração de suas luzes, denúncia de suas sombras”.

Joseph Campbell
A segunda recomendação traz a temática da mitologia num livro incrível que estou lendo.

Eduardo Galeano
A minha primeira recomendação então é o livro do Eduardo Galeano (novamente Galeano por aqui). O livro, como Galeano pretendia é uma “homenagem ao futebol, celebração de suas luzes, denúncia de suas sombras”.

Joseph Campbell
A segunda recomendação traz a temática da mitologia num livro incrível que estou lendo.

Em toda edição organizamos uma coletânea de três recomendações que envolvem: podcast, música e filme ou série, que procuram ser relacionados com o tema da edição da semana, mas que também podem ser aleatórios e serem super legais para refletir um pouquinho.
Música 🎵
Essa música foi lançada bem na época do mundial, depois da Argentina ter sido campeã. A música fala sobre perseverança sobre “não venham me dizer para não tentar mais uma vez”. Me emociono toda vez que ouço.

Vídeo ▶️
Essa é a primeira vez que trago o Dario no Desfilosofia. Esse cara é um filósofo argentino que é minha referência e minha inspiração como docente. A didática dele, sua linguagem, sua forma de expressar as ideias, de dar uma aula, tudo é totalmente diferente a qualquer experiência que eu já tenha tido com professores de filosofia. Essa é uma aula que ele dá fazendo análises filosóficas sobre o futebol, vale muito a pena mesmo que tu não entenda tão bem espanhol. Te aventura!

Filme 🎥
Assisti a esse filme inúmeras vezes com meu irmão quando éramos menores. A sua grande emotividade reside na persistência do atleta, que sonha com ser um jogador profissional e atravessa inúmeros desafios e obstáculos. A jornada do atleta é a jornada do herói.



A história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. Neste mundo do fim de século, o futebol profissional condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável. Ninguém ganha nada com essa loucura que faz com que o homem seja menino por um momento, jogando como o menino que brinca com o balão de gás e como o gato brinca com o novelo de lã: bailarino que dança com uma bola leve como o balão que sobe ao ar e o novelo que roda, jogando sem saber que joga, sem motivo, sem relógio e sem juiz. O jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue. A tecnocracia do esporte profissional foi impondo um futebol de pura velocidade e muita força, que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia. Por sorte ainda aparece nos campos, embora muito de vez em quando, algum atrevido que sai do roteiro e comete o disparate de driblar o adversário do time inteirinho, além do juiz e do público das arquibancadas, pelo puro prazer do corpo que se lança na proibida aventura da liberdade.
O Futebol - Eduardo Galeano em “Futebol ao sol e à sombra”

