10/4/2023

#9 - O que aprender com o filme “A baleia”

A salvação é o escape, ninguém salva a ninguém. Nem nós mesmos nos salvamos.
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Te desafiamos a refletir uma vez por semana sobre temas cotidianos tirados de sua normalidade. Se você veio procurando receitas de vida, saia agora! Acreditamos no desenvolvimento de ideias próprias e do pensamento livre e crítico. Não trabalhamos com verdades absolutas nem com fórmulas prontas. Aqui somente desenhamos ideias. Falamos sobre filosofia desde o lugar em que ela nasceu: nas conversas informais na rua, nos problemas do dia a dia. Viver é fazer filosofia. Seja bem-vindo.

Eu sou o Francisco e também o Chico e o Chiquinho. Eu olho pro mundo e questiono ele, aberto a receber todas as possíveis respostas que ele pode me dar.
Eu sou a filosofia que estudo e vivencio, sou as pessoas que me atravessam e sou ainda a criança que eu espero que nunca saia de mim. Sou meus escritos e minhas leituras, sou o amor aos meus pais e a meu irmão, a minhas amizades e a mim mesmo.
Assim, sou muitas coisas e fui outras: ainda serei, espero.
O que sou hoje me faz querer transmitir conhecimento às pessoas, expressar minhas verdades (que são bem fluídas) e aprender com todo aquele que eu conversar. Quero ajudar os outros a encontrarem suas verdades e no caminho também procurar a minha.

Edição dessa semana:

#9 - O que aprender com o filme “A baleia”

Investimento: 

10 minutos

"Ninguém salva a ninguém."

Liz, personagem do filme “A Baleia”

Ir ao cinema em 2023

Ir ao cinema em 2023 ainda é um dos poucos eventos nos quais passamos mais de duas horas sentados em uma cadeira, sem nos mexer, com o celular semi-desligado e com os olhos e nossa atenção vidrados em uma história. Esse mecanismo é maravilhoso e atemporal: como poderia o cinema morrer?

Gosto de saber que o cinema tem um papel fundamental na cultura, podendo alcançar o ser humano de forma indelével. Com certeza, posso dizer: "Sou feito dos filmes que vi!"

Mas, como em toda indústria que se transforma em uma máquina de lucratividade e busca atingir o máximo de pessoas possível, muitas histórias parecem perder sua profundidade. Não sou um especialista, mas quando vou ao cinema e assisto a filmes como "A Baleia", algo em mim se desloca. Tenho um espasmo da alma, refreio minha vida, desço meus olhos ao escuro do meu ser e me pergunto, me pergunto, me pergunto.

Mesmo entendendo que houve muitas discussões e polêmicas em torno da temática da gordofobia no filme em questão e mesmo considerando que as críticas sejam sérias e relevantes, não pretendo me aprofundar nesse campo, somente me interessa a condição existencial do sujeito enquanto ente dotado de liberdade: quero entender quais são suas possibilidades de ação diante de uma situação tão complexa como a de Charlie, a personagem principal do filme, e como a redenção se manifesta no filme como alternativa para a reconciliação do ser humano com a sua vida.

O que é, afinal, esse papo de redenção?

Superar-se é de alguma forma salvar-se/redimir-se. Superar-se é passar de uma condição considerada inferior para uma superior: é um ato de elevação ou ascenção (essa última palavrinha maldita conotada desde o ascético, de um desenvolvimento espiritual que nos leva a estar mais próximos do transcendente, pra cima, pro céu…).

Enfim, o negócio é que se “precisamos” nos superar é porque tamo numa condição inferior, ou uma posição de merda e queremos encaminhar-nos para uma melhor. Somente precisamos nos salvar se nos é apresentada uma situação em que a salvação se faz necessária, capiche? Se não são só jogos de palavras.

A situação de Charlie

Charlie, a personagem principal do filme, é um cara que chegou a um nível mortal de obesidade. Bem no começo do filme, já descobrimos pela melhor amiga de Charlie, Liz, que é enfermeira, que Charlie tem no máximo sete dias de vida. Assim, Charlie pode ser considerado um condenado à morte (como todos no fundo somos) e é a partir desta ótica que interpretarei todas as atitudes que ele toma a partir da sentença proferida por sua amiga Liz.

São apresentadas no filme duas possibilidades de redenção para a situação de Charlie: uma para salvar a sua vida e a outra para salvar-se da culpa. A que me interessa é a segunda, pois ao ouvir a sua sentença, Charlie empreende não em tentar salvar sua vida mas em se reconciliar com sua filha, a qual ele havia abandonado quando ela tinha 8 anos pois ele se apaixonara por um aluno dele.

A decisão de Charlie de não procurar ajuda para salvar sua vida pode ter inúmeras razões psicológicas em que uma pessoa em sua condição se encontra; eu interpreto que uma destas razões fala sobre a responsabilidade diante de seus atos e sobre a inevitabilidade do destino que o aguarda.

Charlie guardara dinheiro no banco e tinha uma quantia considerável para tentar um tratamento, mas ele decide que esse dinheiro será de sua filha e que não usará nem um centavo consigo mesmo. Portanto, aqui é o giro decisivo do filme e onde estamos tentando pensar sobre sua atitude: Charlie assume seu destino fatal quase que como um suicida à beira do precipício ou um condenado à morte à beira do cadafalso mas não sem antes afirmar-se negando qualquer possibilidade de redenção.

A redenção como anestésico da condição humana

Certo dia entrei à igreja com minha avó e ela se ajoelhou e fez o sinal da cruz, ao me ver de pé, estático, ela me perguntou:

—Não vais pedir perdão?

Lhe respondi que não, que não havia feito nada para pedir perdão. E então saímos da igreja, ela tentando explicar que todos devemos pedir perdão, para assim sermos perdoados. A questão que sempre me faço é: do que preciso ser perdoado?

No começo do filme um jovem e controverso missionário chamado Thomas chega à casa de Charlie para levar a palavra de Deus e alguns non-sense sobre o fim dos tempos. Bem no momento em que ele se aproxima à porta, Charlie esta se masturbando vendo pornô gay e ele começou a passar mal, ter dificuldade de respirar e ter uma espécie de infarto, então Thomas toca na porta e ouve que Charlie estava quase morrendo e entra na casa.

A partir dai a religião começa a tentar fazer-se presente na vida de Charlie e fazê-lo se arrepender por seus pecados: 1. Seu estado corpóreo e 2. sua sexualidade, para assim ser salvo e poder encontrar a paz e a libertação de seu estado “impuro” e “degenerado”. Thomas retorna inúmeras vezes para visitar a casa de Charlie sob o pretexto de que deus o enviava lá, assim como o enviou na noite em que Charlie estava quase morrendo e ele chegou e o ajudou.

A redenção é uma libertação da culpa dos pecados que cometemos em vida. Já ouviram falar na expressão “Culpa originária”? Esta expressão vem lá dos cafofo da Grécia antiga, de uma religião do mistério, uma das primeiras religiões a pregar a existência da alma. Isto quer dizer que somente por nascer já somos culpados e então precisamos procurar o perdão, a.k.a a salvação.

As soluções da culpa: Redenção ou castigo

Alan, o homem pelo qual Charlie havia se apaixonado e pelo qual largou sua família, participara do mesmo grupo missionário que Thomas. O pai de Alan era um dos fodões dessa organização e quando ele soube que Alan era homossexual e que viveria uma vida afastada da religião, casado com Charlie, ele o negou.

Isso levou Alan a uma tristeza tão grande que fez com que ele perdesse sua vida em um acidente não muito bem explicado, mas que estava totalmente relacionado com esta culpa atroz que acabou com sua vida.

No começo do texto falo que me interesso no aspecto da redenção da culpa que é implicitamente exposta no filme. O que verdadeiramente me emociona é que Charlie não acredita na redenção e ele alcança o cume quando também nega o castigo: Charlie é inocente, assim o sentimos, sentimos sua sinceridade, seu olhar que brilha ao mundo e que pretende o perdão não de um deus onipotente, mas sim o perdão de sua filha adolescente, que ele ama e da qual se orgulha com todo seu coração.

Charlie foi um absurdista

Reconciliar-se com sua filha era ele estar se reconciliando consigo mesmo. Ao negar a religião ou a salvação transcendente Charlie se afirma e assume a responsabilidade por todas as decisões que tomou; não precisou se redimir diante de uma figura imaginária, sua grandeza reside em haver dito sim à vida, sim à seu destino. Sua coragem, sua revolta, tudo isto me lembra ao herói absurdo de Camus que apresentei em minha stories-aula no meu Instagram.

Quando a salvação bate na tua porta e tu nega ela, na realidade tu está te afirmando a ti mesmo. Eu não vou me enganar, Charlie diz. Os dados foram jogados; abandonei minha filha e minha mulher, vivi o amor com um homem que amei, ele morreu e eu afundei.

Acho que Charlie nos diz que a condição humana não possui uma salvação, mas há possibilidade de em nossa vida tomar atitudes de reconciliar-nos com nós mesmos, sem esperança, sem nostalgia, vivendo o presente e tentando esgotar aquilo que nos é possível em terra.

Quando Charlie diz na cara do missionário: eu transava com o Alan, fazíamos sexo e dormíamos nus isso é cuspir na cara do dogmatismo e é uma afirmação de si. Além disto, ele diz: eu sou repugnante diante dos teus olhos e assim ele se afirma novamente, assim ele se coloca no mundo como um homem absurdo, assumindo sua condição e abraçando-a.

Claro que isto não é um exemplo, claro que isto não pretende auxiliar ninguém, e o cinema tem essa missão? Ser exemplo para algo?

O que admiro em Charlie foi que ele não escapou, ele encarou de frente, ele abriu a câmera no curso online onde ele fingia que sua câmera estava estragada, ele clamou pela verdade de seus alunos em seus textos, ele demandou uma sinceridade que ele mesmo pregou.

Quando Charlie soergue-se sozinho do sofá (sendo que ele não conseguia caminhar) e vai a caminho de sua filha, em um caminhar que me relembra à um Sísifo que carrega a pedra de sua vida e de todos seus atos, eu penso que como Camus o diz, é preciso imaginá-lo feliz. O sorriso final de Charlie é o sorriso daquele que consciente de sua condição assumiu a responsabilidade, não se entregou a ilusões ou fantasias.

Charlie não tinha do que se salvar pois ele era inocente, assim como todos nós o somos.


*Essa edição é dedicada à Giulia, uma amante do cinema como jamais conheci e com quem divido conversas de tirar o fôlego sobre filmes e personagens do cinema. Alguma vez, a Giulia me disse a frase: “A vida é cinema” e em seu momento, não concordei com ela, mas horas depois entendi que o cinema nos constitui e que nossa vida é assim como um filme. Obrigado Giu.

Vai pro sebo mais próximo da tua casa ou pega um pdf mesmo! Aqui é a seção:

Bota o cérebro pra trabalhar com a leitura hardcore da semana!

O último dia de um condenado

Este livro do Vitor Hugo fala sobre o último dia de um condenado à morte. É impressionante como ele consegue retratar os sentimentos deste que vive a condenação de sua vida. Uma perspectiva diferente da que apresentada pelo filme da edição mas vale a pena conferir!

Moby Dick

O filme trata sobre um capítulo do livro Moby Dick. Confesso que nunca o li mas tenho muita curiosidade em empreender essa leitura, o filme em questão faz uma crítica ao livro que achei muito legal.

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O filme trata sobre um capítulo do livro Moby Dick. Confesso que nunca o li mas tenho muita curiosidade em empreender essa leitura, o filme em questão faz uma crítica ao livro que achei muito legal.

Em toda edição organizamos uma coletânea de três recomendações que envolvem: podcast, música e filme ou série, que procuram ser relacionados com o tema da edição da semana, mas que também podem ser aleatórios e serem super legais para refletir um pouquinho.

Podcast 🎙️

Esse podcast é sumamente esclarecedor, trata sobre doenças psíquicas e vai para além das críticas que foram realizadas do filme em questão. É um ótimo Podcast para se acompanhar para quem gosta de psicanálise.

Stories-Aula 🧠

Convido vocês a conferirem em meu Instagram minha aula sobre absurdismo e sobre o conceito de homem absurdo que utilizo no texto desta edição.

Vocês encontram a aula-stories nos destaques do meu perfil no Instagram, eis o link!

Questões rasgadoras de cérebros:

Da onde nos nasce a ideia de que a gente tá numa condição de merda? E por que a gente tem a sensação de que sempre precisa estar se superando/melhorando/se salvando?

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O que me agrada é pensar que existe para cada pessoa que está no mundo uma filosofia; que a partir de sua individualidade possa refletir e escolher, assim tentando aproximar-se à sua própria verdade.
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O jogador desce as escadas que dão ao estádio. Lhe invade uma ânsia de vomito e sente o seu estômago soltar-se, como que desprender-se do seu corpo. Tal qual uma nota musical que aparece em meio ao silêncio o jogador se faz notar na quadra: ele é este ator que apresenta-se ao cenário, os holofotes o iluminam, os aplausos o elevam, ele está agora à vista, está exposto.
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Haverá alguma forma de filosofar sobre o basquete? Há alguma forma de respondermos às problemáticas humanas a partir de uma reflexão do jogo de basquete? Quando jogam, as pessoas dizem esquecer-se de todos os problemas, de por alguns momentos terem a impressão de que estão em alguma outra dimensão, em outro plano… mas… não será o próprio basquete uma forma de lidar com a vida ao invés de escapar-se dela? Não será o basquete já nossa vida e nele não estaremos também procurando resolver e compreender os problemas que nos esperam do outro lado das linhas que delimitam o templo que é a quadra de basquete? Assim como o jogo de basquete que se joga em seus quatro quartos, eu pretendo pensar o basquete em 4 textos e mais um, o Overtime.
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